O som na literatura?

A arte de construir efeitos sonoros em romances, contos, novelas
Gustave Flaubert, autor de “A educação sentimental”
01/10/2023

Parece insensatez falar em som na prosa literária, talvez silenciosa e morna. Fria, distante. Pode um conto, uma novela, um romance de repente começarem a tocar um frevo, um samba, um rock. Fazer o leitor se sacudir na poltrona, cheio de energia? Talvez por causa de uma referência a um baile de máscaras, uma noitada de carnaval, um rela-bucho de domingo, uma rave de meninos e meninas aos milhares, gritando, pulando, zombando. Bastaria abrir o livro e a música com som e tudo estaria ali no seu triunfo eletrônico. Talvez, talvez, e apenas talvez.

Pode parecer uma insensatez, repito, uma loucura, um absurdo. Mas Flaubert tentou, bem que tentou. E não precisa ir longe, muito longe. Basta abrir o capítulo 7, da segunda parte de Madame Bovary, o clássico do genial francês. Ali está o som de uma feira, não exatamente de uma melodia. Mas é uma brilhante experiência. Leia, leia, leia. Você não precisará sair dançando por aí, até porque é o som de uma feira, como já se disse, e som de feira não se dança.

Para colocar o som na literatura — mesmo o som de uma feira, mas ainda assim, som —, Flaubert recorreu ao diálogo entre Ema e Rodolfo, retirando as marcações (ele disse, ela disse, ele respondeu, ela continuou), deixando as falas soltas com a ajuda de aspas e travessões, entrecruzando-se, mais som do que ritmo, naquilo que muitas vezes se aproxima da poesia pura, mesmo com métrica num leilão ou, como eles dizem, num comício agrícola. O verso livre encontra seu momento. Sem marcação com os chamados verbos dicendi, as palavras flutuam, chocam-se, liberam, circulam a favor da fala. Criam ritmos, movimentos e aí está criado o som. Confuso, é verdade, mas uma experiência magnífica. Fascinante.

Parece mágico: soltas no tempo e no espaço, as palavras criam sons e daí vão ao ritmo.

Exemplo:

“Conjunto de boas culturas!”
— Há pouco, por exemplo, quando fui à sua casa…
“Ao sr. Bizet, de Quincampoix…”
— Podia eu saber que a acompanharia?
“Setenta francos!”
— Cem vezes mesmo pensei em partir; segui-a, contudo, e acabei ficando.
“Adubo.”
— Como ficaria esta manhã, todos os demais dias, toda a minha vida!

Além do corte radical da marcação, Flaubert lançou mão, ainda, dos sinais gráficos que são acordes fortes de pistons, trombones, bombardinos e trombetas em conjunto com as palhetas, num destaque especial: aspas para Rodolfo, travessões para o leiloeiro; aspas, travessões e sinais gráficos.

Quanto a mim, experimentei usar o verbo dicendi — disse — repetidamente em Maçã agreste para criar um som baixo, monótono, capaz de cansar o leitor. Um som que parece uma trombeta com travessões e dois pontos num diálogo no som aflitivo de uma flauta. Lembra a marcha lenta, leve, breve de uma procissão:

Ele disse:
— Da divina pátria amada.
Ela disse: com direito a assento no céu.
Ele disse:
E a medalha do mérito na terra
Ela disse:
Com diploma de herói
Ele disse:
E a beatificação no céu.

Pode-se ainda recorrer a aliterações como em Seria uma sombria noite secreta. E até a numa única palavra como ocorre com Sassaricando nome de canção e de novela. O som pode estar em qualquer obra — romance, novela, conto — de acordo com a técnica. O escritor decide. A poesia é pródiga em canções, baladas, odes.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho