O narrador pede desculpas e muda

Com desculpa ou sem desculpa, o narrador mudou.
Ilustração: Tereza Yamashita
30/03/2019

Com desculpa ou sem desculpa, o narrador mudou. Se mudou ou não, o certo é que a realidade é outra, e quando a realidade muda, a literatura muda completamente. E, com ela, a missão do narrador que reclama uma linguagem mais consistente, menos gramatical e mais vinculada à linguagem das ruas, das calçadas, dos puteiros, dos estádios de futebol.

Falando na tradição brasileira, digamos que sai Menino de Engenho e entra Moleque Ricardo, para ficar no mesmo autor, Zé Lins do Rego. Ou seja, sai a Casa Grande e entra a Senzala. Mas parece claro que estou falando em narradores — aquele que tem o comando da voz — e não apenas de personagens. Se é que personagem é apenas. Em Menino de engenho, o narrador fala, por assim dizer, no ouvido do leitor na intimidade da primeira pessoa. Linguagem equilibrada de um bacharel em Direito, em dois planos. Assim é a linguagem de um menino na perspectiva do adulto. Vamos ver como é isso:

Eu tinha uns quatro anos quando minha mãe morreu. Dormia no meu quarto, quando pela manhã me acordei com um enorme barulho na casa toda. Eram gritos e gente correndo para todos os cantos. O quarto de dormir do meu pai estava cheio de pessoas que eu não conhecia. Corri para lá e vi minha mãe estendida no chão e meu pai caído em cima dela como um louco. A gente toda que estava ali olhava para o quadro como se estivesse em um espetáculo. Vi então que minha mãe estava toda banhada de sangue, e corri para beijá-la, quando me pegaram pelo braço com força. Chorei, fiz o possível para livrar-me.

Em Menino de engenho, o narrador se expõe, o que vai ocorrer em quase todo o Ciclo da Cana de Açúcar — seis romances —, com intervalo para O moleque Ricardo, em que aparece o personagem proletário de Zé Lins do Rego, narrador, porém, na terceira pessoa, expondo o chamado narrador mão de ferro. Aquele que tira a identidade do protagonista, rouba sua voz

Para moldá-la convenientemente. Uma estratégia narrativa oportuna em que o autor esconde o pensamento proletário do moleque Ricardo. Sobretudo quando a questão política se adensa — o romance é, por assim dizer, a obra política de Zé Lins do Rego — e o narrador apenas conta e não deixa aflorar o ideário dos personagens. Veremos agora:

Os colegas agora estavam todos animados com as conversas do masseiro Sebastião. O homem conseguira a confiança para as suas conversas. Falava de uma greve, de um movimento que se preparava para breve. Simão e Deodato não questionavam. Se a coisa era para o bem dos operários, contassem com eles. Ali todos entrariam; até o negro do cilindro que se abalara com o palavreado do companheiro. Operário precisava se unir. O que Florêncio não atingira com todo esforço o outro obtinha: converter para o meio deles o negro de Seu Lucas.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho