O mistério ronda Machado de Assis

"Machado tinha o dom do mistério, mas tratava-o com consciência técnica."
Machado de Assis por Ramon Muniz
01/03/2011

É possível que Machado tenha tido uma vida monótona e chata, não se discute. Mas talvez seja razoável dizer que teve uma vida discreta. Há todavia pelo menos um triângulo amoroso envolvendo um outro escritor famoso. Carlos Heitor Cony, por exemplo, conta, em longo artigo, que a mulher de José de Alencar teve um filho de Machado de Assis. Chamava-se Mário de Alencar e pertenceu à Academia Brasileira de Letras. Coisa de pai para filho.

Machado de Assis soube usar, e muito bem, o dom do mistério, que sempre rondou sua obra, desde Helena, por exemplo. Neste romance, as relações entre a protagonista e o irmão se mantêm misteriosas até as páginas finais. Mais tarde, escreveria Missa do Galo, que veio a se constituir num conto antológico, sem esquecer, é claro, o discutido e polêmico Dom Casmurro, entre outros escritos.

Sabe-se, em princípio, que ele escrevia em jornais para moças. O que o obrigava, no século 19, a usar a sutileza e a elegância, além do mistério — essas as principais características formadoras do caráter do escritor. Até que ele percebeu que faltavam momentos significativos no seu trabalho, achando que precisava melhorar muito. Veio a crise dos quarenta anos. Mas que crise é essa? Dizem os seus biógrafos que Machado tinha constantes crises de tristeza e melancolia — que hoje chamamos de depressão —, sofria da vista, e queria mais consistência na obra. Foi Carolina quem o ajudou. E daí saiu um novo Machado, mais técnico, aproveitando os seus melhores dons. Feito o dom do mistério — que Marco Lucchesi chama de o dom do crime, em livro recente publicado pela Record.

Passou a ler os ingleses com mais insistência. Dom Casmurro, por exemplo, deu-lhe o completo amadurecimento. É o romance, por assim dizer, digressivo. A ponto de usar um narrador — conforme afirma Fernando Sabino — com função de digressão. Sabino identifica no romance pelo menos dois narradores: Bentinho, narrador oculto, e Dom Casmurro, narrador digressivo. Por isso mesmo, a narrativa torna-se cada vez mais misteriosa.

Além disso, usou a estratégia do Otelo, de Shakespeare, invertendo a posição dos personagens. Bentinho, que deveria ser Otelo, para a estrutura interna da obra, passa a ser Iago, para enganar e seduzir o leitor. Não permite que Capitu se defenda, não joga luzes sobre o comportamento dela através de outros personagens. E assim ela se transforma em personagem de criação indireta, ou seja, personagem que só pertence a Bentinho — fora dele não existe. Como ela, nenhum outro personagem pode defendê-la, o mistério se aprofunda. O leitor torna-se vítima de Bentinho/Iago e não de Bentinho/Otelo como é de se esperar. É preciso lembrar ainda que o nome de Bentinho é Bento Santiago. Machado coloca-se na posição de estrategista e não de narrador onisciente, avançando muito na vanguarda do romance ainda no século 19.

Perceba-se, dessa maneira, que Machado tinha o dom do mistério, mas tratava-o com consciência técnica. Nada espontâneo, intuitivo, mágico. Sabia como tratar cada coisa e conforme a necessidade. Para isso, estudou muito e contou com a ajuda de Carolina que, entre outras coisas, revisava os seus textos.

Para quem viveu entre tantas mulheres, a maioria ficcionais, o escritor não precisava de muito. Não é fácil conviver com Capitu e Conceição — personagem de Missa do galo — dormindo e acordando com seus mistérios e sinuosidades.

Marco Lucchesi abre O dom do crime com uma digressão que aborda, justamente, a saúde do Bruxo do Cosme Velho ou do personagem central:

O doutor Schmidt de Vasconcelos sugeriu-me que escrevesse um livro de memórias. Seria uma forma de não deixar em branco o meu passado, além do benefício de espantar os males da velhice. Não todos, que são muitos, alguma parte, talvez, algum resíduo. Decidi seguir o seu conselho, não sem temores e incertezas, diante de um passado cujas imagens se revelam confusas e imperfeitas, como se fosse um mosaico inacabado, miragem do que fui ou deixei de ser.

Procuro abrigo à sombra das estantes. Cheias de livros e remédios, filosóficos e alopáticos. Meu pobre estômago em pedaços, os rins alquebrados, os olhos míopes e astigmáticos. Sinto uma forte atração pela homeopatia, argumento de peso para me libertar do alto custo dos venenos ministrados pelo doutor Schmidt.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho