O leitor também é romancista. E o crítico?

Devemos ser óbvios: toda obra de arte ficcional é feita para o leitor
26/02/2017

Parece um tema sem sentido a contribuição do leitor ao romance? Nesta coluna, vamos examinar um texto exemplar de Percy Lubbock sobre o papel do leitor no romance, ou mais ainda, sobre a obra de ficção em qualquer nível, incluindo o cinema e o teatro. Logo ele que não tem, aparentemente, um papel muito claro na construção do romance. Que tipo de leitor é este e de que maneira ele contribui? Como o escritor pode pensar no leitor enquanto arquiteta um texto longo?

Em primeiro lugar devemos ser óbvios: toda obra de arte ficcional é feita para o leitor. E com o leitor. Nelson Rodrigues tem razão: óbvio ululante. Portanto, o fundamental e insubstituível. E se o leitor é fundamental e insubstituível, exige uma atenção especial. Especialíssima.

O problema é considerá-lo sempre inteligente — assim é tratado na teoria dos formalista russos —, capaz de sentir todas as sinuosas artimanhas do escritor, desde o uso da palavra e seus naturais desdobramentos até a forma mais sofisticada. Respeito ao leitor significa escrever sempre artisticamente. Entender que ele sabe compreender e interpretar o uso de uma simples aspas. Definitivo.

Recorro, portanto, a Percy Lubbock, meu mestre na crítica, para responder a estas inquietações: “O leitor de um romance — refiro-me ao leitor crítico — é também romancista; é fazedor de um livro que poderá agradar ou não a seu gosto quando estiver pronto, mas um livro pelo qual terá que assumir sua quota de responsabilidade”.

“Para que o romance chegue inteiro à mente do leitor há a intermediação do crítico. E como o crítico pode desenvolver esta intermediação? Aí outra pergunta inquietante, sobretudo quando se constata que o romance, em qualquer situação, é feito a três mãos: o escritor, o crítico e o leitor, cada um a seu modo, e com igual responsabilidade.” Vamos ao exame, então.

“O autor faz a sua parte, mas não pode transferir o livro como uma bolha, para o cérebro do crítico. Não pode ter a certeza de que o crítico se assenhoreará de sua obra. O leitor, portanto, precisa transformar-se em romancista, jamais supondo que a criação de um livro seja tarefa exclusiva do autor. Claro está que a diferença entre leitor e autor é imensa, a ponto de estar o crítico sempre inclinado a estendê-la e intensificá-la”.

“A oposição que ele concebe entre o afã criativo e o crítico é muito real; mas ao apequenar modestamente a própria participação, tende a esquecer uma parte que lhe é essencial. O romancista escreve, sem dúvida, de um modo que seria totalmente impossível ao crítico com uma liberdade e um raio de ação desconcertante para este. Num ponto, porém, o trabalho deles coincide: ambos fazem o romance.”

Mais adiante, Lubbock procura definir muito bem as diferenças entre o autor e o crítico na construção do romance, com muita acuidade e exame certeiro. “Seria necessário definir a diferença? Isso pode ser feito num instante. Figuremos Tolstoi e seu crítico lado a lado, examinando a imensidão livre e informe do mundo da vida. O crítico nada tem para dizer; espera, olhando para Tolstoi, à procura de orientação. E Tolstoi, com a ajuda de um segredo que lhe é próprio, com o seu gênio, não titubeia. Mergulha a mão na cena, retira de fragmentos, à direita e à esquerda, massas irregulares de vida arrancadas do seu cenário; escolhe. E sobre estes troféus põe-se a trabalhar com todo o poder de sua imaginação, detecta-lhes a importância, desenreda e atira fora o acidental e o insignificante; e tudo refaz em tudo em condições jamais conhecidas na vida, condições em que uma coisa pode crescer de acordo com as próprias leis, expressando-se sem estorvos, Tolstoi liberta e completa. E depois, a toda essa vida nova, — tão parecida com a velha e tão diferente dela, mais ou ainda mais parecida — parecida com a velha, poder-se-ia dizer do que esta mesma já teve a oportunidade de sê-lo — a toda esta vida, que vive agora muito mais intensamente do que antes, Tolstoi dirige a perícia de sua arte; ele a distribui num plano único, abarcante; e ordena e dispõe. E assim o crítico recebe a sua orientação, e tem início o seu trabalho.”

Neste momento é decisivo lembrar a constrição do narrador em a Odisseia, de Homero. Voltando da guerra, Ulisses sai do navio e volta para casa e os aedos cantam a história que ele próprio desconhece. Falam do passado e do futuro, e a história vai construindo a si mesma de um forma por assim dizer, espontânea e bela.

Desta forma é possível lembrar ao leitor a sua responsabilidade de romancista, acrescentando: ele não apenas lê mas também escreve o romance, que distraidamente carrega nas mãos ou joga, relaxa, num canto do sofá onde se encontra. É claro que não escreve no sentido convencional, mas à maneira que avança na leitura, cria os personagens as situações, conforme o seu próprio ponto de vista.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

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