1. Por uma estética do proletariado
Quando decidiu classificar a obra de Lima Barreto, Antônio Houaiss escreveu que ali estava um “autêntico escritor brasileiro”, porque destaca não somente o intelectual que nasceu no Brasil, mas sobretudo um negro que aborda traços decisivos da nossa cultura, nossos temas e seus desdobramentos, nossos dramas e aspirações, sem beletrismo, sem frases rebuscadas, sem apostos cheios de imagens mirabolantes, eloquência branca, capaz de revolver nossos problemas na linguagem e na técnica, longe do aburguesamento dos adjetivos, advérbios, conjunções e preposições inconsequentes, retórico e balofo. A frase limpa, incisiva, direta. Nesta mesma linha podemos encontrar Jorge Amado, também um “autêntico escritor brasileiro”, cujos personagens são criados à imagem e semelhança da nossa gente vendendo munguzá e mingau puba para os tão pobres quanto eles. Cria-se, desta maneira, uma verdadeira e revolucionária Estética do Proletariado. Como se costuma dizer: “Uma literatura do povo”, que Jorge Amado devotou não só sua obra, mas toda sua vida.
Mesmo ressaltando e considerando sobretudo e principalmente esta definição de Jorge Amado, não me furto o direito de analisar Jubiabá, um romance honesto sobre o negro brasileiro, sob a perspectiva daquilo que denomino, na minha Teoria da Criação, de “pulsação narrativa”, e que a doutora Priscila Varjal define, em seu doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), como revolucionário processo criador. Também convido para aquela outra Estética, a do Erotismo, que esclarece o que se convencionou considerar estilo jorgeamadiano, na verdade a “voz narrativa” do escritor, pessoal e intransferível — com metáforas eróticas, no sentido de lembrar que o erotismo é um traço muito forte da cultura brasileira, saído e surgido do sangue negro, sobretudo no entrelaçamento com o sangue branco.
Por tudo isso, ninguém tem dúvida — sequer remotamente — que Jorge Amado entregou sua obra, desde a primeira anotação, à Estética do Proletariado, mesmo com sua contribuição muito pessoal e particular ao que se chama de Estética do Erotismo, com alusões permanentes ao sexo, além de metáforas e símbolos que atraíram e seduziram uma legião muito fiel de leitores. Nada burguês, em absoluto, nada, mas usando reiteradas imagens que nos remetem a relacionamentos erótico-afetivos como se verifica, por exemplo, na sua obra-modelo, ou obra-prima, Jubiabá, seguramente seu romance mais importante, um libelo contra o racismo, a completar uma trilogia da qual fazem parte Capitães da areia (a infância) e Terras do sem-fim (a maturidade). É claro que estão aí presentes os elementos da Estética do Proletariado, a vida dos pobres, miseráveis, os sonhos destroçados, a força da injustiça, o poder da desgraça humana sobre os desvalidos, o destino dos desvalidos.
No primeiro capítulo, uma luta de boxe confronta as duas raças, negra e branca, equilibrando os murros e as circunstâncias sociais, em contraponto com um personagem inominado, mas perfeitamente visível que por muito pouco não levou também uma surra de Balduíno. Este personagem, talvez o narrador, faz a pontuação da luta: seriam os olhos do narrador?
- “Um homenzinho branco, cara chupada, mordia um cigarro apagado.”
- “Aí o homem magro, que mordia o cigarro inútil, cuspiu e gritou:
‘Onde está o negro Antônio Balduíno, que derrubava brancos?’”
- “Desta vez parte da multidão acompanhou o homenzinho e disse em coro: ‘Quedê o derrubador de brancos?’”
- “Balduíno disse ao Gordo: ‘Quando eu sair daqui dou uma surra neste sujeito. Marque ele…’”
- “Antônio Balduíno olhava o branco estendido aos seus pés.”
- “A multidão berrava, mas o negro só ouvia a voz metálica do homem do cigarro: ‘Aí, negro, você ainda derruba brancos…’”
No segundo capítulo de Jubiabá, de propósito, Jorge Amado mistura as duas estéticas e transforma dor em gozo. Aliás, a Estética do Proletariado, neste caso, contém a Estética do Erotismo. Vejamos este exemplo:
Dias bons. Também, aqueles em que sentia a campainha da assistência badalando na cidade. Era sofrimento que existia lá embaixo e Antônio Balduíno, menino de oito anos, gozava aqueles pedaços de sofrimento como o homem goza a mulher.
Destaque-se que em alguns lugares no Brasil “assistência” é o mesmo que “ambulância”. Portanto, o narrador em Jorge Amado está falando na “sirene da ambulância” prestando socorro a uma pessoa doente, talvez uma indigente. Em seguida, escreve uma frase que oferece alívio ao personagem e ao leitor: “Mas as luzes que se acendiam, purificavam tudo.”
Observem, ainda, que o narrador abre a frase, lá em cima, com “dias bons”, em que revela o sentimento do personagem ao sentir a companhia da assistência badalando na cidade. E o personagem é um menino de oito anos. Que, alguns parágrafos antes, tem justificada sua idade para expor a liderança de capitães de areia, assim:
Apesar dos seus oito anos, Antônio Balduíno já chefiava as quadrilhas de molecotes que vagabundeavam pelo morro de Capa-Negro e morros adjacentes.
Naquele instante, o narrador expõe a expectativa de Balduíno enquanto espera as luzes da cidade, chefiando delinquentes, mas inquietantemente humano, sacudido pelo sangue e pela ansiedade, que resulta na imagem de uma relação sexual: “Tinha uma volúpia aquela espera, parecia um homem esperando a fêmea.”
Agora observamos uma verdadeira relação sexual até o orgasmo:
Eis que a cidade já se envolve quase completamente nas trevas. Antônio Balduíno não enxerga mais nada. Vinha um vento frio com a escuridão. Ele nem o sentia. Gozava voluptuosamente os ruídos, o barulho que aumentava cada vez mais. Não perdia um só. Distinguia as risadas, os gritos, as vozes dos bêbados. As conversas sobre política, a voz arrastada dos cegos pedindo uma esmola por amor de Deus. O barulho dos bondes carregados de pingentes. Gozava devagarinho a vida da cidade. Um dia teve uma emoção enorme que o arrepiou. Chegou a ficar de pé. É que distinguiu choro, choro de mulher e vozes que consolavam. Aquilo subia como um tropel dentro dele, o arrastavam numa vertigem de gozo. Choro…. alguém, uma mulher, chorava na cidade que escurecia.
Lembro que em Terras do sem-fim, o narrador, mais adulto, usa a metáfora do corpo feminino para conquistar a mata, em muitos casos a chamada mata virgem. Nesse romance o foco é a conquista dos sertões baianos pelos coronéis do cacau e revela-se um narrador completamente amadurecido.
A Estética do Proletariado se consolida em Jubiabá quando o narrador destaca a vida sacrificada de Balduíno na infância pobre, na caracterização dos personagens, na reunião de elementos culturais, na força e no valor da espiritualidade, sobretudo na aparição de Jubiabá:
Ajudava a velha Luiza a fazer o manguzá e o mingau de puba que ela vendia no Terreiro. Lavava o ralo, trazia os apetrechos, só não sabia ralar coco. Os outros meninos no princípio levaram na troça dizendo que ele era cozinheiro, mas se calaram no dia em que Antônio Balduíno rebentou a cabeça de Zebedeu com uma pedrada. Apanhou da tia e não sabia por que apanhava. Porém perdoava rapidamente as surras que a velha lhe aplicava.
A cultura brasileira, sempre a cultura popular brasileira em primeiro lugar na definição da personagem Luzia. Destaque para os personagens sempre surgidos da gente do povo. A velha era conversadora e envolvente. Os vizinhos vinham conversar com ela, ouvir as histórias que ela contava, histórias de assombrações, contos de fadas e casos da escravidão.
2. Voz narrativa
Então, observe-se que, habilmente, para definir a sua verdadeira “voz narrativa”, Jorge Amado usa o paralelismo literário com a força e o vigor de sua gente no primeiro capítulo com um narrador oculto, o “homenzinho magro com um cigarro apagado”, astuto e crítico; e, no segundo, a questão erótico-afetiva, transformando dor em gozo, uma forte característica desta “voz narrativa”. É por isso que neste primeiro capítulo a narrativa é seca e direta e, no longo segundo capítulo, o personagem lança um olhar erótico, gordo, sensorial, sonoro e rítmico.
O aprofundamento deste estudo demonstra que é assim que este baiano se revela na verdade um “autêntico escritor brasileiro”, a criar um mundo verdadeiramente nacional sem cair no xenofobismo e no ridículo de um folclorismo estéril.