É uma epopéia? É um romance? Uma novela? Um conto? Não, não é nada disso, é apenas um texto longo, conforme classificação do próprio autor, o escritor Marcelino Freire. Assim é Nossos ossos, livro que chega ao leitor com a marca de uma prosa vigorosa, com sintomas de escândalo, embora no nosso tempo nada seja escandaloso, uma linguagem apurada, limpa, serena, harmônica. Uma prosa longa não porque fuja da técnica do romance, mas porque o autor prefere assim. O que seria mesmo um romance? Os conceitos são tantos e tão amplos que não vale a pena procurar uma definição absoluta. Mário de Andrade, por exemplo, simplificava tudo quando lhe pediam uma definição de conto. Dizia ele, conto é tudo o que eu chamo de conto. E fim, não se discute mais. Portanto, procure-se apenas a qualidade do escritor, o texto que ele realiza, as qualidades artístico-literárias, e basta.
Portanto, não é importante que um texto seja classificado de romance, de epopéia, de novela, ou de conto. Como já se disse, o importante é o produto final. Aquilo que chega aos olhos do leitor ou do crítico. O que estará sempre em julgamento é a qualidade artística. Sempre. A classificação não resulta em nada. O fim da epopéia deu lugar ao chamado romance burguês, ou apenas ao romance, como conhecemos agora. Houve um tempo em que o romance longo, de 600, 700 ou 800 páginas era chamado de romance-rio — uma história única e longa que ia chamando pequenas histórias ou pequenas narrativas enquanto evoluía no leito. Tudo isso desapareceu para dar lugar ao simples, ao inclassificável, ou comum, ao mais imediato e necessário — o resultado artístico da obra. É claro que a epopéia e o romance têm características próprias — na epopéia conta-se a história de um povo; no romance, o objeto é o indivíduo na sua imensa solidão.
A novela teria apenas um episódio, sobre o qual se debruça o autor, explorando todas as suas possibilidades. E o conto? Como fica o conto? O conto trabalharia também um único episódio sem, necessariamente, explorar estas possibilidades. Revela o conflito. E pronto. Mas crônica parece ser assim também, com a característica do eu lírico. Aí vem Mário de Andrade e proclama: Conto é tudo o que eu chamo de conto. Portanto, epopéia é epopéia, romance é romance, e prosa longa é prosa longa. E vamos parar por aqui para não ficar enjoado, não é?
Nossos ossos é uma prosa longa com características de romance de boa qualidade. De ótima qualidade, aliás. Uma narrativa que se se realiza no discurso indireto livre — técnica criada por Flaubert e que consiste na aproximação da voz do narrador com a voz do personagem, de forma a parecer única. Há quem confunda com fluxo da consciência, mas não é exatamente assim. Em psicologia ou na psicanálise, Fluxo da Consciência é a narrativa contínua com mudanças de assuntos ou de temas. Em literatura, significa uma técnica com as mesmas características, mas eivada de rimas, lapsos, silêncios, destacando o ritmo. E ritmo é o que há de mais brilhante na prosa de Marcelino. Às vezes, o som. Mas neste livro Marcelino optou pela ausência da rima, pelo menos não naquele sentido reiterativo de outros. E sua prosa apresenta-se ainda mais forte e mais bela.
Mas, enfim, de que trata Nossos ossos? Narra a trajetória dramática de Heleno de Gusmão, envolvido com a vida intelectual e sexual, com michês e admiradores, prêmios e fracassos, uma vida tensa e densa, em que não somente a alma está exposta, mas sobretudo os nossos ossos, celebrando a aventura de existir em todas as suas variantes. É preciso acompanhar o texto, palavra por palavra, sem esquecer nem evitar as cenas fortes no envolvimento sexual. Não é um livro qualquer, um romance, uma novela, um conto longo. É um livro em que Marcelino avança firme para a maturidade, revelando o que veio fazer na literatura brasileira, e por que está consagrado pelo domínio da técnica. Mesmo quando a técnica parece meramente intuitiva. Não é uma aposta em vão de João Alexandre Barbosa, até porque não é qualquer um que escreve um livro deste. Para criar e conduzir um personagem desses é preciso ter um grande domínio de texto, uma grande coragem para tratar com o personagem, e seguir e seguir e seguir as curvas e as sinuosas da narração.
Além disso, Marcelino evitou os cenários luxuriantes, como aconselha Graciliano Ramos, e investe apenas, e rapidamente, naqueles que podem enriquecer o personagem. Talvez algo assim, na página 30: “Fiz isso e nada, era culpa daquela manhã, no final da tarde é que o cansaço bate”. E isso é cenário? Sim, um cenário interior e psicológico, que mais sugere do que afirma e mostra, o cinzento da alma e dos ossos, do abismo do personagem. Um cenário silencioso, agreste, desprovido de paisagem — são três coisas diferentes: paisagem, ambiente e cenário — e sem adjetivos, se é que se pode dizer assim, com tudo o que de estranho se possa imaginar. Por todos os motivos, uma excelente prosa longa.