Não se acanhe: ficção é lugar para conversa

Em literatura, estética e conteúdo caminham juntos
Gustave Flaubert, autor de “A educação sentimental”
01/01/2012

É natural que o bom leitor, ou leitor sistemático, queira ser escritor. Nada mais normal. No entanto, quem quer escrever precisa aprender primeiro a pensar. Precisa definir o que quer com a obra. Esquecer toda vaidade. Será julgado pela crítica sempre de acordo com os resultados estéticos, e o resultado estético depende de sua maneira de ver o mundo. Não existe forma/estética sem conteúdo, ponto de vista ou visão do mundo. Tudo isso responde a algumas simples perguntas: O que é que vou escrever? Como escrever sem saber o que vou dizer? Eu só sei o que vou dizer se tiver um ponto de vista. Isso não significa que você vai escrever discursos ideológicos, políticos, sermões religiosos, teses econômicas ou coisas parecidas. Aliás, tudo isso será transformado em forma. Quem, por fim, realiza a sua obra é a técnica — os elementos internos da obra, que você vai escolher ou definir.

Mas lembre-se: seja qual for o seu ponto de vista, é preciso começar uma obra ficcional — romance, conto ou novela — sempre com uma cena em ângulo aberto, o que transformará sua idéia em técnica. A cena significa movimento, o que, em geral, provoca o interesse do leitor. Lembre-se, por exemplo, da cena de abertura de Madame Bovary. Quando o romance começa, os alunos estão sentados, sonolentos, abrindo a boca, silenciosos. Aí entra o tutor conduzindo uma carteira e, ao lado, um rapaz, que chama a atenção até pelo boné exótico. O professor decide perguntar seu nome e ele, supertímido, solta um grunhido que nada quer dizer: “Charlesbovarrrrrrrrrrrrry”, e repete: “Charlesbovarrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrry”. O professor pede então que ele se levante. Na verdade, ele se levanta, e o chapéu exótico, ridículo, cai no chão e é chutado pelos colegas. Depois de todo esse embaraço volta a se sentar.

Neste momento, Flaubert apresenta o personagem, mostra como ele se comporta e deixa claro que tipo de personagem tratará no transcorrer do romance. Ou seja, é Charles Bovary, o futuro marido de Emma Bovary. E mostrará, ao invés de dizer, que se trata de um homem fraco, sem reações, que se deixa levar pelos outros. Basta pensar nisso para entender a diferença entre técnica e conteúdo.

Na época de Madame Bovary era comum se escrever assim: “Na cidade de Ruen vivia um médico fraco e trapalhão, tímido e incompetente chamado Charles Bovary. Ele estudou na escola X, onde era motivo de brincadeiras. Foi criado somente pela mãe, porque o pai morreu cedo”.

O leitor perceberá, mais tarde, que o primeiro encontro dele com Emma se dá em meio a uma pequena confusão — que quase repete a primeira apresentação, mas na qual se estabelece a diferença de caracteres a que Flaubert chamou de “personagens em oposição”. Ao contrário de Charles, Emma é apresentada como alguém capaz de tomar iniciativas, pronta para estar sempre à frente. É nesse sentido que os romances de Flaubert provocam renovações.

A partir desses exemplos você pode criar seus próprios caminhos, sem a necessidade de imitar. Isso tudo não deve significar um caminho único; tente variações que você vai estabelecer seu projeto de criação.

Nunca esqueça que Aristóteles viu no personagem a metáfora em ação. Você criará até se decidir pelo melhor, observando, ainda, que uma página deve ter de quatro a cinco parágrafos de cinco linhas, para deixar o leitor mais à vontade; uma página com um só ou dois parágrafos de 10 linhas cada pode causar ansiedade no leitor. Desde que não seja por motivo técnico.

Quanto ao diálogo, optará pelo diálogo interno ou até pelo discurso indireto livre. Se se tratar de uma narrativa aberta, observe que o diálogo tradicional, marcado por um travessão de acordo com a fala ou com mudanças de fala, será mais aconselhável até pela distribuição das palavras na página, com espaço aberto entre as falas.

O que é um diálogo interno? É quando o autor não usa travessões, nem aspas, nem verbos dicendi. Este tipo de diálogo aparece dentro da narrativa, e deve ser usado, por exemplo, no caso dos textos intimistas.

Você estava lá? Não devia ter ido, não devia ter saído. Não podia ir embora. A surpresa ficou na boca. Assim, suspensa. Toda surpresa é suspensa? Nem devia haver uma surpresa. O olho aceso ali, espiando. Coisa incrível a surpresa. E os olhos mirando, mirando muito bem. (Trecho do meu livro Seria uma sombria noite secreta).

Qualquer leitor mediano percebe que existe aí um diálogo. Basta verificar o ritmo. E o ritmo é fundamental em qualquer narrativa, sobretudo por causa das perguntas e das respostas. Aí não há a poluição das aspas nem os espaços abertos por causa dos travessões. A narrativa continua íntegra, íntima, interior. Por esta razão é que funciona melhor numa narrativa intimista.

No texto aberto, solto, para narrativas sociais, políticas, históricas, documentais, jornalísticas, como já se disse, é aconselhável o diálogo aberto:

— Você estava lá?
— Não devia ter ido, não devia ter saído. Não podia ir embora.
— A surpresa ficou na boca. Assim, suspensa. Toda surpresa é suspensa?
— Nem devia haver uma surpresa.
— O olho aceso ali, espiando.
— Coisa incrível, a surpresa.

E os olhos mirando, mirando muito bem. (Trecho do meu romance Seria uma sombria noite secreta)

E as aspas? Como ficam as aspas nesta história?

É preciso ressaltar, todavia, que o escritor, desde o princípio, deve entregar seu ponto de vista a um narrador em terceira pessoa, em primeira pessoa, ou na falsa primeira ou falsa terceira pessoa. O autor não deve entrar na história. De forma alguma. Mesmo se for um romance, uma novela ou um conto autobiográfico, o autor deve usar sempre a simulação. Escolhe um personagem e faz dele seu alter ego. E o que é falsa primeira ou falsa terceira pessoa? A falsa primeira pessoa, por exemplo, é uma técnica em que a narrativa é escrita na primeira pessoa, mas com movimentos de terceira. Lembrando, ainda, que a primeira pessoa é uma narrativa em close, quando a narrativa está centrada no personagem central, que conta, que explica, que expõe. Na terceira pessoa, a narrativa está sempre aberta, vista de muitos ângulos, de muitas maneiras, não se fecha em si mesma.

É preciso ressaltar, ainda, que esta não é uma regra. Nem muito menos infalível. O estudioso deve procurar outras variantes e seguir aquela que lhe pareça mais correta. É claro que os caminhos são muitos, inclusive no uso dos cenários nem sempre bem recomendados. A liberdade é o caminho da criação. As técnicas servem para indicar, iluminar os caminhos criadores. Mas sem servir de amarras fortes e definitivas. Cada escritor deve saber o que fazer na hora certa, no momento adequado, sem jamais perder a própria identidade. Nunca ceda ao desejo de criar sozinho. Conheça as cenas, os cenários, os diálogos e use-os conforme a sua necessidade sem renunciar à sua vontade, determinação e liberdade.

NOTA
O texto Não se acanhe: ficção é lugar para conversa foi publicado originalmente no jornal Pernambuco, de Recife (PE). A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

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