Uma oficina literária divide-se em dois planos: linguagem e técnica. A linguagem pede equilíbrio e harmonia nas palavras, frases cuidadosas, parágrafos em geral curtos e objetivos. Há expressões coloquiais que precisam ser esquecidas quando integram um texto de narrador, por exemplo, mas podem e devem aparecer quando ditas por um personagem, e até quando o narrador é um personagem. Parece complicado, mas não é. “A chuva que caiu ontem” deve ser riscada, assim como “quando me acordei ontem”. A rigor, ninguém “se acorda”. Tira o pronome. Basta escrever: “Quando acordei ontem”.
Recuse sempre: “Via de regra” e “por outro lado”. São inadequadas ou impróprias, além de literariamente ruins. Nem mesmo em discurso ou ensaio. Esqueça. Sem querer, você estará escrevendo um texto erótico ou indecente. Preste atenção. Cuidado, sobretudo com os encontros de sons das letras. Veja: “O triunfo das palavras”. Sem dúvida, um bom título, mas observe como fica: “O triunfo das palavras” — “fo-das”. Assim acontece com a expressão “como sempre”, porque ela é ambígua e pode causar duplo sentido. Veja o diálogo: “Como vai sua mulher?” “Como sempre” “Como sempre sim, eu sei, mas como ela vai?”. É muito questionável, ainda, a expressão “do fundo do coração”. “Do-do”. Além de ficar ruim “fundo do”, o som é desagradável. Fundo de quê? Não é certo que coração tem fundo. Pode provocar risadas e aí o texto perde a força. Em textos dramáticos, então, seja muito cuidadoso.
Mas o que se faz para evitar uso da conjunção “como”? Ou para que a conjunção não se transforme em verbo? Recorre-se à metáfora, até porque o “como” é próprio da símile, que empobrece a frase ou o verso. A metáfora suprime a conjunção, não é mesmo? Está lembrado da composição de Caetano Veloso? “Uma mulher, uma tigresa” — metáfora; “Uma mulher é como uma tigresa” — símile. E fica muito mais bonito, muito mais elaborado.
Esta frase aparece constantemente nos jornais: “O conferencista foi aplaudido pelos presentes”. Que bobagem! Os ausentes não aplaudem. Mas já encontrei esta pérola em livros: “Graciliano Ramos renunciou em pleno mandato”. Claro, sem mandato é impossível renunciar. Redundâncias, pleonasmos e exageros são heranças de um resquício de barroco que sempre se arrastou na nossa linguagem, mas o escritor precisa ter cuidado. Vá com jeito, vá com jeito.
A melhor maneira de usar bem a linguagem é estudar autores referenciais, com a qualidade de Ariano Suassuna e Graciliano Ramos, dois opostos, e por isso mesmo é preciso estudá-los juntos. Até porque ambos escrevem sobre a mesma região e sobre cenários bem parecidos ou aproximados. Pode-se copiar numa folha em branco e com um lápis os textos de um e de outro. Isto se chama trabalho ou esforço intelectual. O que um escritor deve fazer sempre. Com muitos escritores, com os mais próximos e os mais distantes. Tudo isso ajuda muito. Não acredite nessa história de que escrever é espontâneo. Não é mesmo. Escreva e escreva. Escolha a página de um grande autor, copie e depois tente escrever a sua própria página. Faça isso várias vezes. Muitas. Até se sentir livre dos escritores imitados. Estude todos os dias. Escreva. Copie. Imite. Até encontrar seu próprio pulso. E então esqueça tudo. Fiz muito isso no meu começo. Sobretudo no jornalismo.
Aqui entra em questão o adjetivo. Aliás, deve-se usar o adjetivo sempre que necessário. É possível usá-lo em pelo menos três ocasiões: 1) Antes do objeto, para iluminá-lo e esclarecê-lo. Exemplo: Vi uma bela mulher; significa que a mulher será sempre bela. 2) Depois do objeto, tornando-o circunstancial. Exemplo: Vi uma mulher bela; ou seja, bela apenas naquele instante. 3) No diálogo: — Vi uma mulher. — Bonita? — Sim, bela. E mais, tudo depende do seu equilíbrio estético, da harmonia do texto. Aliás, tudo é assim, equilíbrio e harmonia, no campo das artes. Há ainda outras expressões perigosas. Cuidado com “nunca gostou”, veja como fica horrível: “Nun-ca-gos-tou”. O encontro central das palavras cria outra palavra muito ruim.
Outra palavra a merecer o maior cuidado é o pronome “sua”, extremamente ambíguo. Pode causar confusão no leitor e truncar a frase, exige muita atenção. Vejamos, por exemplo, a seguinte frase no começo de um romance: “Desde que foi levado a dormir na cama com sua mãe, Arlindo sentiu que a vida mudou completamente”. O leitor toma um choque. A mãe dele foi para a cama com Arlindo? E ele nem sabia quem era Arlindo. Afinal? Tem ainda a história da mocinha que foi dançar no clube popular. Começou dançando com um tipo que suava muito, muito. Daí a meia hora ela disse: “Mas você sua, hein?” E ele respondeu, sério e compenetrado: “Eu também vou ser seu”.
Sem esquecer o verbo “tinha”. “Ela tinha”, por exemplo, não se escreve nunca. Lendo em voz alta: “É latinha”. Tudo isso merece o máximo de atenção, mesmo que pareça bobagem, detalhes. Aquilo que poderia ser — fechada a frase — uma expressão carinhosa, passa a ser algo vulgar. Em correspondências comerciais, esqueça “acuso o recebimento” e “aceite os meus protestos”. Além disso, não use o “já” diante de “tinha”, por exemplo.
NOTA
O texto Não duvide, a linguagem pede muito molejo foi publicado originalmente no suplemento Pernambuco, de Recife (PE). A publicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.