Somente agora, tanto tempo passado do fim da Cortina de Ferro, é que sabemos, através da literatura e de romances memoráveis, o que acontecia, de verdade, com as pessoas de todos os níveis sociais sob esse regime. É com esta sensação que lemos, e estudamos, livros como Tudo o que tenho levo comigo, de Herta Müller, prêmio Nobel de 2009, com tradução competente de Carola Saavedra.
A princípio, o personagem Leo Auberg lembra Holden Caulfield, ou um parente muito próximo do personagem de Salinger em O apanhador no campo de centeio, vagando pelas ruas com sua mochila ou com a mala que era, na verdade, a capa do gramofone do tio. Mas não é nada disso, Leo é um dramático e inquietante jovem europeu da minoria alemã numa Romênia dominada pela ditadura comunista, saindo do campo de trabalho onde passou vários anos sob a acusação — a grave acusação — de amar, sinceramente, a liberdade. (“Eu queria ir embora daquele dedal de cidade onde até as portas tinham olhos. Em vez de medo eu sentia uma impaciência encoberta. E certa culpa, já que a lista que fazia meus parentes desaparecerem-se era para mim uma circunstância inaceitável. Eles temiam que algo de grave pudesse acontecer comigo longe de casa. Eu queria partir para um lugar que não me conhecesse.”)
Como se percebe, ele está saindo deste campo de trabalho forçado na Rússia, para onde foi conduzido depois de ter levado uma vida anárquica, livre, sem apego a quaisquer sentimentos e situações. Herta Müller revela tudo isso numa linguagem leve, com breve pontuação, às vezes cínica, quase sempre séria, a apresentar e revelar um mundo interior complexo e confuso, precisando mesmo de uma direção. “Estranho, sujo, desavergonhado e belo”, Leo rememora parte significativa de sua vida homossexual antes, durante e depois do campo de trabalho onde esteve durante cinco longos anos, cumprindo uma ordem de Stálin, que mandava para lá, no pós-guerra, todos os alemães “extraviados” morando na Romênia, sob a acusação de que haviam colaborado com Hitler.
Apesar do título afirmativo Tudo que eu tenho levo comigo, Leo não tem nada e leva o que não tem, porque nada lhe pertence, verdadeiramente, a não ser a dor e o sofrimento — uma inquietante experiência de vida, que seduz e atormenta o leitor. Ele mesmo revela: “levei tudo o que eu tinha. Meu não era. Ou tinha outra função, ou pertencia a outra pessoa. A mala de couro de porco era a pequena caixa de um gramofone. O guarda-pó pertencera a meu pai. O sobretudo com gola de veludo, ao meu avô. A calça bufante, ao meu tio Edwin. As polainas de couro, ao vizinho, o Sr. Carp. As luvas de lã verde, à minha tia Fini. Apenas o cachecol de seda vermelho-vinho e a nécessaire eram meus, presentes dos últimos natais”.
Apesar da linguagem leve, o romance é forte, muito forte, com cenas terríveis. Antológica é a viagem entre a Romênia e a Rússia, num trem de carga, sob a vigilância de guardas cruéis, apesar da lua que tornava o vagão tenuamente iluminado, mas sem brilho ou beleza. E vêm, logo depois, os dias sombrios no campo de trabalho forçado — reiteradas vezes chamado apenas de “campo de trabalho” —, que lembram Memória da casa dos mortos, o célebre romance de Dostoiévski. Ocorre todavia uma mudança substancial: no autor russo, os personagens estão derrotados, nunca mais serão redimidos; em Herta Müller, há esperança, esperança sempre, mesmo que triste, às vezes irônica, às vezes sombria. A retirada da palavra “forçado” já é uma forma de esperança. Sem dúvida. Se não fosse o grotesco da situação, muitas passagens da viagem dariam, por exemplo, a sensação de um passeio de adolescentes. Sim, um passeio de adolescentes cheio de festa e de nostalgia, com alguma coisa de dramático. O tratamento literário que Herta dá ao personagem Leo é plenamente interativo e, talvez por isso mesmo, ela tenha começado o livro com suas aventuras em meio às apreensões familiares.
O romance é um projeto literário da autora acalentado durante muitos anos como forma de denunciar um sistema político massacrante e torturador, sem um mínimo respeito ao humano. Daí vem a inquietação deste livro com temas tão grosseiros e grotescos, mas, como já se disse, com uma linguagem leve que, na maioria das vezes, beira o lirismo e até mesmo o romântico. É possível que, em certos momentos, Herta tenha sido criticada pelo tratamento que dá ao romance — não conheço outras obras de sua autoria, nem mesmo a crítica, mas é possível imaginá-las dadas as circunstâncias políticas em que viveu. Os críticos radicais não costumam perdoar os grandes autores, capazes de conviver sentimentalmente com a condição humana. Não é por acaso, portanto, que Leo seja tratado sempre com um menino mimado, um adolescente rebelde, um Holden Caulfield rebentando as amarras da vida nos Estados Unidos ou na Romênia, tanto faz. A sua rebelião interior, sua força, às vezes seu cinismo, sua ironia, é o que importam e o que interessam para o leitor, capaz de compreender também a desesperança e o vigor do personagem.
Tudo isso leva ao conceito de obra de arte, a partir dos critérios criados por Tolstói: conteúdo, simplicidade e beleza. O conteúdo é idéia, o ponto de vista do narrador, através do projeto do autor; a simplicidade se realiza no uso das técnicas sofisticadas, que chegam ao leitor até o nível de beleza, que é, enfim, o ideal de toda obra. Assim, nós temos em Herta o conteúdo, ou seja, a denúncia da injustiça dos campos de concentração, o horror dos regimes da cortina de ferro sob o comando de Stálin, e a simplicidade da técnica narrativa, que é a leveza e o lirismo para evitar o peso trágico ou dramático, chegando, enfim, à beleza, que é o tratamento acabado da obra. Portanto, não é por acaso que Herta Müller tenha sido premiada com o Nobel, apesar do imenso silêncio que se fez em torno do seu nome, durante tanto tempo. Uma justiça, sem dúvida.
E no Brasil, podemos ler alguns dos seus títulos publicados pela Companhia das Letras e pela Globo. Vivemos no país que privilegia sempre os autores da moda, os best-sellers ou alguns norte-americanos sem grande importância. Somos um país de muitos livros, mas nem todos de grande qualidade. E só ouvimos falar em Herta, ou lemos um livro de sua autoria, há dez anos, quando a editora Globo lançou O compromisso, sem qualquer referência especial da crítica, embora já tivesse conquistado dois grandes prêmios internacionais. Mesmo assim, parece que Herta não tem a simpatia, sequer a atenção, dos críticos brasileiros, mais preocupados, hoje, com a baixa literatura que se produz por aí, romances, novelas e contos de “empreguetes”.
NOTA
O texto Na falta de liberdade, um pouco de amor foi publicado originalmente no jornal Pernambuco, de Recife. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.