Quando Jorge Amado resolveu matar o protagonista literário no romance Suor, transformou um pardieiro do Pelourinho, em Salvador, em personagem central, com seus pedintes, esmoleres e desempregados, chamados popularmente de arraia miúda, uma gente a que hoje chamamos de invisíveis, sem direito a auxílio ou qualquer programa governamental, num tempo em que nem se falava nisso.
Com a vantagem de que naquele lugar abjeto, para a sociedade bem comportada, surgiam figuras como o mendigo Cabaça, Chico, Linda e Julieta, apresentadas numa cena cruel e dolorosa como esta que chega com estas duas criaturas do fosso social:
Bateram na porta. Pancadas íntimas de quem não espera consentimento para entrar. E Julieta entrou de combinação.
— Estou assim por causa do calor.
Sentou-se na cama. As coxas abertas, escandalosas. Espiou o fogareiro, pegou no vestido.
— Que cheiro de chulé, hein, Linda?
Como a resposta não veio, continuou:
— Também nessa bilosca mora gente de toda laia… Já reparou na vizinha dos fundos, dona Risoleta? Caga em papel de jornal pra não esperar que a latrina se esvazie. Juro que não limpa a bunda. E nunca desceu pra tomar banho…
— É uma mulher muito trabalhadora.
— Pudera! Pra dar comida ao malandro do filho… Um homem daqueles, de dezenove anos, gordo como um burro, que não faz nada….Passa o dia todo socado com as raparigas do Tabuão ou então matando o bicho. Só vem em casa comer e buscar dinheiro. Que calorão, puxa!
Uma cena direta, incisiva, com a crueza de duas mulheres fortes, reveladas mais na ação dos diálogos de forma a somente aí mostrar a ambientação do romance sem recorrer a cenários, colocando o leitor imediatamente na grave denúncia social com seres humanos transformados em agonia social. Um pardieiro onde vivem aqueles rejeitados pela sociedade.
Vem daí o interesse em ser agudo e forte, sem os cenários luxurientos que deslustram a cena ativa. Só uma palavra para tipificar Julieta: escandalosa. Possivelmente definida pelo olhar crítico e julgador de Linda. O mesmo olhar que julgaria o filho de dona Risoleta. Neste caso a técnica do olhar do personagem é cirúrgico.
Basta aqui, portanto, a palavra diante do outro diálogo. É algo distinto e forte. Temos então o discurso verborrento de Linda para definir o caráter de um personagem que nem sequer apareceu em cena. E o que se chama de personagem de criação indireta, ou personagem que passa a existir sem a intervenção do narrador.
Mas Linda continua falando e julgando muito. Muitíssimo.
Pegou na combinação e acudiu-a para ventilar as coxas.
E esse vestido, hein, dona Risoleta? A senhora devia era mandar aquela espanhola pras profundas… Feia como uma jararaca e querendo vestido de mocinha. Garanto que quer botar os chifres em seu León… Quanto ela paga?
Percebe-se, agora, que as duas têm a missão de trazer os personagens para o romance. Sobretudo através dos caracteres.