Monólogo em terceira pessoa

Por que um monólogo e um solilóquio parecem ser a mesma coisa?
Ilustração: Rafa Camargo
02/04/2016

Todos nós conhecemos o monólogo e o solilóquio, ambos, pelo óbvio, em primeira pessoa, ou seja, personagens que falam com a própria intimidade, buscando respostas para questionamentos pessoais. Mas por que um monólogo e um solilóquio parecem ser a mesma coisa? Um monólogo é simples, direto, linear, lógico, quase sempre em voz alta para uma plateia atenta. Preste atenção: para uma plateia atenta. Assim, o monólogo precisa de ouvido. Por isso, é lógico e linear, precisa de alguém que escute e compreenda. O solilóquio é diferente: Ilógico e fragmentado, não precisa de ouvidos, porque ainda mais interno, para o íntimo, para a alma. Em primeiro lugar porque o monólogo ou monólogo interior têm parentesco. Exemplo: o monólogo de Hamlet, de Shakespeare. Com origem no teatro, em voz alta. Por tudo isso, exige a primeira pessoa, sem dúvida. De propósito uso o verbo exigir. O solilóquio é muito comum na prosa de ficção, sem voz alta, não teatral, íntimo. Ninguém precisa vê-lo e muito menos compreendê-lo. São diferenças imensamente sutis que o leitor comum não vai entender. Alguns críticos chamam de solilóquios de Shakespeare aquilo que outros chamam de monólogos e daí por diante.

Aqui preciso dizer que o que está em jogo mesmo é a técnica de sedução do leitor. Daí o monólogo que chamaremos de monólogo em falsa terceira pessoa — isto é, escrito em terceira pessoa — narrativa ampla, sem restrições de tempo e de espaço com uma visão ampla, aberta, solta, mas com técnica de primeira, narrativa em primeira pessoa, fechada, sem liberdade de espaço e de tempo, em close. Se o monólogo é escrito em primeira pessoa, traz o leitor para a intimidade do texto, foco narrativo de dentro, sem questionamentos. Mas quando escrito em falsa terceira pessoa, deixa o leitor sem intimidade com o texto, sem o compromisso de deixá-lo dentro do texto, participando do interior, ou da psicologia do personagem. Como se o personagem não estivesse pensando, e mais do que pensando, falando em voz alta. Vamos citar o exemplo de Flaubert, em Madame Bovary. Para situar melhor, lembro o instante em que a família Bovary chega a Ruen e entra na hospedaria — segundo capítulo do romance. Janta ali e Emma conhece Léon, que virá a ser seu amante. Para desviar a atenção do leitor, Flaubert faz com que Léon veja Emma nua, inteiramente à luz da lareira, e tira toda a responsabilidade narrativa de Emma, que passa o jantar inteiro conversando com Léon. No capítulo terceiro, o narrador mostra que o tabelião ficou apaixonado pela mulher. Ele não diz em palavras, mas representa em cenas curtas e, em aparência, descompromissadas:

No dia seguinte, quando levantou, viu o escrevente na praça. Emma estava de peignoir. Ele ergueu a cabeça e cumprimentou-a. Ela fez uma inclinação rápida e fechou a janela.

Cenas rapidíssimas que seduzem o leitor. No jogo de cenas Emma olha — viu o escrevente na praça — mas é ele quem vê — Emma estava de peignoir. E por isso a cumprimenta. Ela, porém, fecha a janela. No parágrafo seguinte, o leitor é informado de que Léon esteve o dia inteiro esperando pelo jantar. O autor-narrador inexperiente diria que Léon esteve o dia inteiro esperando, ansiosamente, pelo jantar. Mas retira o advérbio de modo e isso fica representado, até porque, um pouco antes, o personagem destacou o peignoir de Emma, em busca da intimidade dos seios. Para destacar a ansiedade de Léon, o narrador recorre a um monólogo em falsa terceira pessoa, linhas adiante:

O jantar da véspera fora para ele um sucesso considerável; jamais, até então, conversara durante duas horas seguidas com uma dama. Como pudera ele expor-lhe, e em tal linguagem, uma quantidade de coisas que antes não teria dito tão bem? Léon era habitualmente tímido e conservava a reserva de que participam, ao mesmo tempo, o pudor e a dissimulação. Achavam em Yonville que ele tinha maneiras distintas. Ouvia os mais velhos raciocinarem e não se mostra exaltado em futebol, coisa rara num rapaz. Além disso, era dotado de certas habilidades: pintava aquarela, sabia ler a clave de sol e de bom grado conversava sobre literatura, depois do jantar, quando não jogava qualquer jogo de carta. Homais respeitava-o pela sua instrução; a senhora Homais gostava muito dele pela sua condescendência pois várias vezes leva as crianças ao jardim, apesar das crianças andarem sempre sujas, de serem mal-educadas e um tanto linfáticas, como a mãe.

Lendo-se bem, percebe-se a voz em primeira pessoa muito próxima e fechada em close, sem movimentação além do personagem. Com isso, o narrador diminui o efeito dramático e deixa o leitor livre para montar o seu próprio enredo. O monólogo existe mas a técnica é diferente. Coisa de artesão literário.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho