A literatura brasileira não tem uma grande tradição no tratamento de romances — ou prosa de ficção — metafóricos, sobretudo na questão política, optando, quase sempre pelo documento, a sociologia ou a antropologia e o panfleto, deixando o artesanato de fora, apesar de autores monumentais do porte de Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Osman Lins ou até Machado de Assis no século 19.
Por isso, tornou-se comum tratar das questões da ditadura no panfleto, na denúncia pura ou sistemática, ou naquilo que se convencionou chamar de romance-reportagem e romance-denúncia, jornalismo com jeito de literatura que servia, diretamente, aos objetivos políticos. Numa trilha muito pessoal e particular, surgiu o escritor goiano José J. Veiga, aí pela década de 1960, com seus romances metafóricos, de grande qualidade literária, mas hoje basicamente desconhecido dos leitores.
Sombras de reis barbudos é um grande romance metafórico ou simbólico, como foi rotulado na época, embora seja um livro da mais alta qualidade. Conta a história de opressão, pânico e falta de liberdade numa cidadezinha do interior, pela ótica de um jovem e, por isso mesmo, ainda mais opressiva. Na falta de material analítico, a crítica chamou-o também de livro fantástico ou de literatura fantástica, embora a rigor não seja uma coisa nem outra. Sombras de reis barbudos é apenas um romance, e um romance de alta qualidade artística, como de resto são os romances de Kafka.
Quando Kafka diz na Metamorfose que K. acordou transformado num inseto está realizando aquilo que se pode chamar verdadeiramente de obra de arte. Se escrevesse que K. acordou angustiado, humilhado, derrotado, teria feito um bom texto, sem dúvida, mas não passaria de jornalismo ou de ensaio. O ensaio diz as coisas como elas são, num sentido direto e definitivo, mas a literatura inventa, recria, estabelece tensão artística. Transformar o personagem num inseto faz com que ele atinja um grau superior de interpretação, de invenção e provoca, sem, dúvida, um número imenso de interpretações.
Um homem angustiado e humilhado é só um homem angustiado e humilhado, com força literária, sem dúvida. Mas falta-lhe qualidade artística. A qualidade transformadora. Um inseto é, em si mesmo, um inseto abjeto, nojento; portanto, na visão humana, derrotado, asqueroso. Como imagem, e literatura é imagem, transmite a visão caótica e dramática do homem.
Assim também funciona a obra de Clarice Lispector, cuja força superior está nas imagens e nos símbolos. A personagem de A paixão segundo G. H. come e vomita uma barata. Não poderia haver imagem maior para definir o nojo e a rejeição do mundo. Se ela escreve que a personagem vomitava o mundo talvez construísse também um texto muito forte, mas estaria fazendo jornalismo, por mais estranho que pareça.
A literatura se realiza, assim, no plano dos signos e das insígnias. E quando se trata de literatura, é preciso estar atento. Quando escrevi A história de Bernarda Soledade, que marca o início da minha vida literária, queria, com certeza, me engajar no Movimento Armorial, mas precisava de elementos para criticar a opressão e o medo, sem necessariamente fazer um discurso jornalístico ou ensaístico. Era, também, e ao meu modo, uma crítica ao regime autoritário vigente. Por isso fui buscar os elementos da cultura popular nordestina. Nada mais enriquecedor e verdadeiro. Segui, de propósito, as lições do mestre Ariano Suassuna, de quem sou discípulo orgulhoso.
Usei, em primeiro lugar, a figura feminina de Bernarda para evitar o lugar-comum do coronelismo sertanejo, de forma a criar uma imagem do poder e, mais ainda, da sedução do poder. Ao lado dela coloquei outras duas mulheres — Inês e Gabriela, significando aí a liberdade — Inês aparece, quase sempre nua e desafiadora —, e a loucura do sonho e da ilusão — Gabriela é uma velha que atravessa os campos cantando, com os braços levantados, sempre vestida de noiva.
Bernarda impõe o que ela chama de ordem, exige que todas as terras e que todos seus animais sejam seus. Torna-se dona de todos os homens e de todas as mulheres. Além disso, os animais têm vida depois de mortos. Uma história metafórica, que a editora francesa chama agora de “um western brasileiro, com toques de realismo mágico”.
O que importa, para mim, é que a literatura, a verdadeira e sagrada literatura, se realiza no plano artístico do simbólico e do metafórico, tornando possível o sonho e a ilusão.