Lição de humildade e de paixão

A grandeza e profundidade da impactante novela “A morte de Ivan Ilitch”, de Tolstoi
Tolstói, autor de “Guerra e paz”
01/05/2023

Não adianta adjetivar — melhor, maior, magnífico —, até porque A morte de Ivan Ilitch, do velho Tolstoi, se impõe por si mesma, na dor, na solidão das palavras, no ritmo de sua ambientação. O leitor deixa-se conduzir pelo mistério da narrativa e dos personagens, sobretudo daquele Guerássim, que na definição de Pasolini era um anjo, cuidadoso com Ivan, zeloso nas tarefas diárias, entre elas a de carregar nos braços o corpo só ossos de um homem devastado pela doença e pelo desprezo, sujo de excrementos, sem direito a banho a não ser quando o próprio Guerássim se dispunha a ajudá-lo, tomado pela compaixão e pelo amor que é, afinal, a principal tarefa do homem sobre o dorso enigmático do mundo.

É assim que este personagem assume um lugar de absoluto destaque na novela, somente superado pelo próprio Ivan já inteiramente combalido pelas dores e pelo sofrimento. Destaque porque sem palavras graves ou situações forçosamente dramáticas, Guerássim é ele só, também, o homem abandonado no mundo, que somente tem forças para ajudar e socorrer, como se o ajudar e o socorrer fossem parte de sua respiração, do seu sangue a escorrer levemente nas veias; um ser humano que não precisa de um nome para se identificar. Se ele não se chamasse Guerássim seria Guerássim do mesmo modo, este anjo que se move com delicadeza da luz que vence e derrota as trevas, mesmo sem ser chamado. O autor colocou sobre este personagem toda a sua sabedoria religiosa e espiritual. Destacando assim nele próprio a figura do Anjo.

A novela começa em situações em nada semelhantes ao personagem central quando sua morte é anunciada em modo vulgar, sem qualquer emoção, entre burocratas, destacado aí um mero anúncio de jornal, mas revelando a hipocrisia e a ambição de pessoas diante da morte de um colega, de um homem que estivera com eles desde a doença não identificada, chamada pelos médicos unicamente de rim deslocado — acho que uma doença que não se conhece hoje em dia. Fruto de uma pancada pouco acima do quadril. O anúncio silencioso da morte de Ivan Ilitch fora feito num pequeno jornal, de forma objetiva e clara.

Tarjado de negro, estava impresso: “Prascóvia Fiorodóvina Goolóvna participa aos parentes e amigos, com profunda dor, o passamento do seu amado esposo, Membro da Corte Judiciária, Ivan Ilitch Golóvin, ocorrido aos 4 de fevereiro deste ano de 1882. O sepultamento terá lugar na sexta-feira, a uma hora da tarde”.

Publicada já no amadurecimento de Tolstoi, a novela ganhou logo a admiração do seus inúmeros leitores, sobretudo aqueles que já viam nele um místico, autor de um Evangelho, dentro dos conceitos mais radicais do cristianismo, ele próprio criador de uma religião, o Tolstoismo, embora punido pela Igreja Ortodoxa.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho