José Castello na luta verbal

A potência das palavras e da literatura na denúncia das mazelas sociais
01/11/2022

Encontro na coluna de José Castello, deste Rascunho, texto que revela elementos dignos e sinceros da luta verbal que empreendemos em substituição à literatura como a arte das belas letras inteiramente desnecessária e inútil neste mundo de miseráveis e pobres cada vez mais humilhados e ofendidos. Chama-se O homem do cobertor [edição 269, setembro/22] e surpreende um homem solitário, faminto e desvalido torturado pelo vento da noite em busca de ajuda, tocado pela desgraça de nossa época: a fome.

O narrador e o personagem se mostram imediatamente arrebatados pela dor: “talvez isso seja o que chamam de empatia”, escreve Castello, cujo personagem se vê seduzido pela agonia do outro. E, por isso mesmo, atormentados. Daí em diante trocam olhares de agonia e mágoa, realizando aquela técnica que chamo de “o olhar do personagem”, construindo de forma contundente e verdadeira os movimentos interiores do texto, dispensando, em muitos casos, a intervenção do narrador.

Uma técnica que traz a sensibilidade de um para com o outro: “Continuo a observá-lo com a sensação bizarra de que me contemplo em um espelho”. Narrador que inventa personagem e personagem que inventa narrador, chegando-se à técnica da criação indireta do personagem. Tudo isso exponho no meu livro A luta verbal – A preparação do escritor, que destrói a narrativa tradicional e caduca para criar novas e revolucionárias técnicas que denunciam as agressões humanas.

A narrativa se enche mais de dor e agonia numa pergunta que detona ainda no primeiro parágrafo a luta verbal: “O senhor me arranja um cobertor?”, embora o narrador acrescente: “Palavras , nessas horas, são puro lixo”. Palavra, sim, palavra — outro problema da luta verbal. Por isso digo sempre aos meus alunos: “Não escrevam só com as palavras, mas com o sentimento das palavras. É isso? E é assim? Observem que as palavras humildes e exatas não se revelam com adjetivos ou complementos, sem diminutivos, sossegam na página com a fraqueza de uma mão estendida. Evoluem para a comunhão”.

Na narrativa plana e comum, lírica e feia, onde as palavras são apenas palavras, o narrador escreveria num jogo sentimentaloide: “O senhor me arranja um cobertorzinho velho?”. Ruim e maltratado, sem respeito ao sentimento das palavras. Daí em diante, o texto só faz melhorar.

Aparece então uma nova personagem, uma dessas mulheres que mergulham no conservadorismo e na estupidez, enquanto os dois, abraçados, tentam evitar uma queda. Num rasgo de religiosidade enganosa, proclama: “Jesus, proteja os alcoólatras”.

O mais importante, porém, acima de tudo, é a denúncia social. A frieza humana diante da fome, do frio, do desamparo.

É marcante, profundamente marcante, esta cena em que os dois se abraçam para não cair. Um momento definitivo desta luta verbal. Na verdade, nesta nossa luta verbal.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho