Os norte-americanos escondem o que os Estados Unidos têm de mais verdadeiro e mais cruel jogando às traças e ao silêncio devastador a obra contundente de John Steinbeck, um dos seus escritores mais competentes. Vencedor do Nobel de Literatura em 1962, o autor de As vinhas da ira viu seu nome enxovalhado e sua obra rasgada porque exibia, com imensa qualidade, as chagas e dores deste gigante, cujo capitalismo nem sempre pôde estancar o sangue que corre das veias dos miseráveis.
Intérprete de um tempo dantesco chamado de “a grande depressão” — fome e miséria do Tio Sam —, Steinbeck não poderia ser diferente sob pena de trair a arte da escrita. Ali estão os pobres esforçando-se para viver, carregando nos ombros as mazelas da miséria e a fome sem precedentes.
Não creio que esta obra possa fazer medo a este país, que se ergueu das cinzas e das dores, mesmo que a miséria ainda esteja ali mordendo os calcanhares. Muito pelo contrário, em meio ao desespero, reluziu o ouro e a vitória.
Não se quer com isso dizer que não existe fome naquele país. É claro que existe. Todos nós sabemos. A raça humana se desespera e sofre em qualquer lugar. Eu mesmo vi pedintes desamparados na madrugada de Nova York, em 1989. Inevitável. Assim são construídas as nações. Impossível evitar.
É justamente a qualidade literária de Steinbeck que dá à cena de fome, de terrível fome, cercada de prantos e de gemidos, no final de As vinhas da ira, a dimensão humana da desgraça devastadora — e tudo isso sob o teto dos Estados Unidos.
A Família Joad, protagonista do romance, enfrenta todas as dificuldades para atravessar os campos secos e desgraciosos da Califórnia quando a noite chega e, com ela, tudo aquilo que testemunha a tormenta da noite. Não é possível continuar a caminhada. Para complicar, veio uma tempestade, dessas que molham mas não alimentam a terra. A família procurou onde se abrigar. De repente apareceu um celeiro com ares de esperança. Escreve Steinbeck:
A estrada serpenteava junto ao riacho. Os olhos da mãe perscrutavam a paisagem inundada. Ao longe, à esquerda, sobre o flanco de uma colina de sua declive, erguia-se um celeiro enegrecido pela umidade.
— Olha! — disse a mãe — Aposto que esse celeiro está bem seco. Vamos ficar lá , até a chuva passar.
O pai suspirou.
— Aposto que o dono do celeiro vai enxotar a gente.
Estava escuro lá dentro. Uma luz fraca apenas penetrava pelas fendas da parede de tábuas.
— Deita! Rosasharn — disse a mãe — Deitaí e descansa, ouviu?
Vou ver se dou um jeito para secar tua roupa.
Winfield disse:
— Mãe! — E a chuva que fustigava o teto do galpão abafou a sua voz — Mãe!
— Que é? Que é que tu queres?
— Olha ali naquele canto?
A mãe olhou. Havia dois vultos recortando-se na penumbra: um homem deitado de costas e um menino, sentado ao lado dele, de olhos arregalados, fixos nos recém-chegados. Quando eles o olharam, o menino, lentamente, pôs-se de pé e acercou-se deles. Tinha uma voz rouca:
— Esse celeiro é seu? — perguntou.
— Não — disse a mãe —, a gente entrou aqui por causa da chuva, mas não é nosso. Tamo com uma moça doente aqui. Será que vocês têm algum cobertor seco pra emprestar? Ela tem que tirar o vestido molhado.
O menino regressou ao seu canto, apanhou um cobertor seco e entrego-o à mãe.
— Muito obrigado — disse ela. — Que é que esse moço tem?
O menino respondeu com a mesma voz rouca e monótona:
— Primeiro ele ficou doente; agora ele está morrendo de fome.
— O quê!?
— É isso. Morrendo de fome. Ficou doente na colheita de algodão e faz seis dias que não come nada. A mãe foi ao canto obscuro e debruçou-se sobre o homem. Tinha uns 50 anos. Seu corpo era barbudo e descarnado. E os olhos muito abertos. O menino colocou-se ao lado da mãe.
— Ele é teu pai? — perguntou ela.
— É, sim. Ele sempre dizia que não estava com fome, ou que já tinha comido. Dava tudo o que tinha pra mim. Agora tá fraco que não pode nem se mexer.
A chuva amainou outra vez e tamborilava com brandura no teto do celeiro. O homem emaciado moveu os lábios. A mãe ajoelhou-se ao lado dele e encostou o ouvido à boca do homem, cujos lábios tornaram a mover-se.
— Bom — disse a mãe —, fica sossegado. Espera até eu tirar as roupas molhadas de minha filha..
A mãe voltou para junto de Rosa de Sharon.
— Trata de te despir, anda — disse.
Estendeu o cobertor, fazendo dele uma cortina para se escondê-la dos olhos dos outros. E quando Rosasharn estava nua, enrolou-a no cobertor.
O menino estava agora novamente ao lado da mãe, explicando:
— Eu não sabia de nada. Ele sempre me dizia que já tinha comido ou então que não tinha fome. A noite passada, eu entrei numa casa quebrando vidraça da janela e roubei um pão. Dei um pedaço pra ele comer, mas vomitou tudo e depois ficou mais fraco ainda. Devia era tomar sopa ou leite ou qualquer coisa assim. Será que a senhora tem algum dinheiro pra comprar leite?
A transcrição é longa, creio, mas não poderia ser diferente. Trata-se de uma cena extremamente dramática, que continua ainda muito bonita no antológico final deste romance que causou enorme mal-estar na América. Tratou-se logo de chamá-lo de comunista, justo naquele instante em que se chegava ao auge da Guerra Fria.
Mesmo assim, a transcrição continuaria para completar a emoção estética do leitor. Até aquela cena incrível em que o homem é obrigado a mamar no peito de Rosa para sorver o leite salvador — ela que acabara de dar à luz e o fizera com um sorriso misterioso nos lábios.