Literatura não é redação É escrita, mas não é redação. Pela natureza inventiva, não está reduzida a regras, normas, sistemas — o que não significa que tem licença para errar, ou seja, aquele erro gramatical, que muitas vezes leva à estupidez.
Neste sentido, o escritor de ficção deve compreender a sua missão, que é a de inventar a própria língua, recorrendo, inclusive, a uma técnica capaz de solucionar o problema, como é o caso de Graciliano Ramos, que buscou no monólogo em falsa terceira pessoa — monólogo em terceira pessoa? — a linguagem narrativa de Fabiano, em Vida secas, sobretudo no capítulo Cadeia, onde vamos encontrar o seguinte diálogo:
— Como é, camarada? Vamos jogar um trinta-e-um lá dentro?
Em princípio, verificamos que a frase é dividida em duas para uma única questão.
Do ponto de vista criativo, a frase obedece a uma reiteração.
Mas o forte da questão está na resposta do matuto:
— Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme.
Para não repetir a fase do personagem, o autor entrega ao narrador a criação de uma frase que corresponde à sua visão cultural e não meramente gramatical.
Sem esquecer nunca que o autor escreve, mas quem conta é o narrador. Esta é uma espécie de truque que justifica a qualidade narrativa. A resposta truncada, quando o homem do interior corre da objetividade para fugir ao que lhe parece um desrespeito à autoridade, dizendo não, mas um não cheio de curvas e voltas. Afinal, estava diante de uma figura que lhe impunha grave respeito. Mesmo assim, o autor recorre ao narrador que, livre da gramática, inventa uma resposta que não lhe convém gramaticalmente. Observando-se ainda os tons guturais dos personagens, Graciliano impõe um:
— Ladrona.
No capítulo Sinhá Vitória, quando a linguagem erudita exige um “ladra”. E, um pouco antes, um “ixe”, que seria um “Virgem Maria”.
Mas, afinal, o que é a falsa terceira pessoa, que Graciliano usou tão abundantemente nos exemplos que citamos? A falsa terceira pessoa é, repete-se, a terceira pessoa com técnica de primeira pessoa. O narrador assume o seu ponto de vista profundamente individualizado, o que aliás, é óbvio, o que significa que o narrador conta com o ponto de vista do personagem. Na falsa terceira pessoa, o narrador faz de conta que o ponto de vista é seu, mas na verdade, está falando no ponto de vista do personagem de que se fala.