Graciliano Ramos justifica a luta verbal

O escritor precisa usar suas qualidades para denunciar a fome, a miséria, o preconceito
Graciliano Ramos, autor de “São Bernardo” e “Vidas secas”
01/07/2022

Começo lembrando, imediatamente, sem maiores explicações, estas palavras do grande Graciliano Ramos sobre a literatura perfumada que se pratica por aí em vários níveis. Tem gente que escreve como se o Brasil fosse um paraíso social, mas é preciso enfrentar os nossos problemas, mostrar os erros dos programas governamentais, sair em busca de soluções, o que, em princípio, não parece ser responsabilidade literária, mas somente de políticos, economistas, sociólogos, líderes empresariais. Nada disso, o escritor precisa usar suas qualidades para denunciar a fome, a miséria, o preconceito, a dor de pais que não podem educar os filhos, sem sentimentalismo, sem romantismo, mas com a determinação de quem está no front de batalha. Tudo isso sem esquecer as técnicas literárias, que na verdade são instrumentos de batalha desde o surgimento de grandes escritores que revisavam a forma conservadora de escrever. Não é preciso pobreza mental ou mau gosto. Assim como destaca o mestre Graciliano:

Há uma literatura antipática e insincera que só usa expressões corretas, só se ocupa de coisas agradáveis, não se molha em dias de inverno e por isso ignora que há pessoas que não podem comprar capa de borracha. Quando a chuva aparece, essa literatura fica em casa, bem aquecida, com as portas fechadas. E se é obrigada a sair, embrulha-se, enrola o pescoço e levanta os olhos para não ver a lama dos sapatos. Acha que tudo está direito, que o Brasil é um mundo e que somos felizes. Está que ela não sabe em que consiste esta felicidade, mas contenta-se com afirmações e ufana-se do seu país. Foi ela que, em horas de amargura, receitou o sorriso como excelente remédio para a crise. Meteu a caneta nas mãos de poetas da academia e compôs hinos patrióticos; brigou com os estrangeiros que disseram cobras e lagartos desta região abençoada; inspirou a estadistas discursos cheios de inflamações, e antigamente redigiu odes bastante ordinárias; tentou, na Revolução de 30, pagar a dívida externa com donativos de alfinetes, botões, broches e moedas de prata. Essa literatura é exercida por cidadãos gordos, banqueiros, acionistas, comerciantes, proprietários, indivíduos que não acham que os outros tinham o motivo para estar descontentes. (Linhas tortas, editora Record)

Tudo isso vai ao encontro do poema Nova poética, de Manuel Bandeira, também construtor de uma poesia que não fosse apenas perfumaria, emoção de tertúlia literária, com moçoilas e moçoilos fardados para a escola, para o beijo na face de pais e mestres:

Vou lançar a teoria do poeta sórdido,
Poeta sórdido.
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito.
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama.
É a vida.
O poema deve ser como a nódoa no brim.
Fazer o leitor satisfeito se dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas esta fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade.

Pois bem, é a esta poesia que se destina a LUTA VERBAL. Com tudo o que ela tem de empenho e de determinação, deixando para trás esta literatura “antipática e insincera” de que fala Graciliano Ramos, no seu jeito a um tempo doce e agressivo. Graciliano é tantas vezes citado aqui de propósito, é claro.

Logo, logo chega às livrarias — no tempo em que havia livrarias — o meu livro A luta verbal (Iluminuras), em que destaco um manifesto literário para que todos se lancem num movimento que pretende se solidarizar por amor e por arte com as dores de um povo que tem fome e sede, sem contar, nunca, com a paixão das autoridades. É preciso escrever uma obra que possa despertar o pingo de lama no brim branco.

A luta verbal é, na verdade, a segunda edição do meu livro A preparação do escritor, acrescida de um longo capítulo com este título e de uma capa magnífica de Hallina Beltrão, que se destaca pela imensa criatividade com um traço vigoroso e firme.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho