Tenho ouvido constantemente que “ficção é mentira”. Mas não é isso. Ficção não é mentira. É outra verdade: contada de maneira diferente com outros elementos. Não reúne os fatos do dia a dia nem as histórias convencionais. Não está nos jornais, nos processos judiciais, nas paredes, mas está na mente dos criadores que as entrega aos narradores e personagens de papel. Está, sobretudo, no inconsciente coletivo de populações inteiras e, pouco a pouco, constroem um povo, uma civilização. Depois ganha força nos livros, nos cinemas, nos teatros e não volta mais a ser história ao vento. E aí se transforma em verdades absolutas. Um exemplo incontestável: Dom Quixote existiu ou não? Quem se arriscará a dizer que não?
A verdade da ficção é, na maioria dos casos, mais verdade do que as verdades verdadeiras, porque estão nos contos populares, nos poemas folclóricos, porque estão dentro de outras verdades não reveladas e que vêm no espírito formador das gentes, porque estão dentro da realidade das mentes criadoras. Quando um escritor se senta para escrever, para criar, todas as verdades se reúnem para conspirar com ele. Não precisa ninguém dizer: “não foi assim que aconteceu” porque foi assim e assim será. A verdade está criada e ninguém vai desmenti-la, em tempo algum. Um personagem é uma metáfora, mas à maneira que se desenvolve deixa de ser metáfora e assume o lugar de personagem de carne e osso, ainda que seja ainda de papel.
Um caso clássico de que a ficção é outra verdade e não apenas verdade comum é o romance O sol é para todos, de Harper Lee, que conta a história de um negro que é injustamente acusado de estupro. Isso é verdade, mentira ou ficção? É ficção e isso importa. Em alguns casos é chamado de caso verdadeiro. Verdadeiro ou não, cabe uma afirmativa: Não importa se é ou não ficção. Na década de 50 do século 20 eram casos muito comuns no Sul dos Estados Unidos. De forma que não ser o caso que os autos do processo contam, mas é a verdade em absoluto. A história é vista como verdadeira mas muito mais verdadeira é a ficção. As duas se misturam num só caminho.
É, na verdade, um caso muito parecido com O velho e o mar, de Hemingway, uma ficção, com certeza. Mas o velho escritor lhe dá uma força tão grande e tão extraordinária, que não seria diferente se fosse uma história verdadeira. Hemingway forjou a narrativa de Santiago e do peixe, mas aquilo ocorre muitas vezes nos mares caribenhos. De forma que se pode dizer que é tão tênue a linha que separa a verdade da mentira que não se distingue uma da outra.
Além disso, há a questão do romance documental ou do romance reportagem que nós conhecemos através dos livros de José Louzeiro, destacando-se Aracelli, meu amor e Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, ambos trabalhando histórias de verdade da vida brasileira, sobretudo nos tempos da ditadura, quando muitas coisas aconteceram de forma estanha nos porões do regime, acusado de muita arbitrariedade nem sempre apurada com precisão.
É claro que o escritor tem ampla liberdade para criar cenários e situações, mas tudo dentro da verdade, deixando o leitor sempre dentro da realidade. Este é, pelo menos, o pacto de honra do autor, mesmo que ele não seja o narrador.
Nisso tudo, é preciso lembrar que essas experiências nascem a partir de A sangue frio, de Truman Capote, esquecendo todas as técnicas narrativas, apoiando-se apenas no texto incisivo e direto, deixando que os conflitos apareçam unicamente nas cenas.