Talvez o fato de ser músico, de conhecer a intimidade de uma partitura, os mistérios de um instrumento, tenha levado James Joyce a se preocupar desde muito cedo com o ritmo e o andamento de uma obra de ficção. Por exemplo, Um retrato do artista quando jovem, escrito ainda sob a marca da juventude, ou da jovialidade, apresenta uma incrível variedade de elementos musicais, a começar mesmo pelo título. Sei até que falar de Joyce nestes tempos de literatura consumista, parece uma heresia. Uma barbaridade. Creio, porém, ser necessário. Já não digo que as pessoas pratiquem, mas, pelo menos, estudam. Sim, porque literatura — e a arte em geral — precisa de consciência clara e objetiva.
Sempre repito em aulas e palestras, artigos e cursos, que a ficção aparentemente, e só aparentemente, é a mais pobre manifestação artística. É claro, nos recursos. Mas só aparentemente. Porque o cinema, por exemplo, conta com todos os recursos possíveis e impossíveis — som, imagem, fala, movimento, cores, é a um tempo teatro, artes plásticas, literatura, e mais alguma coisa que se queira. Assim também é a própria música; o teatro também. E outras, e outras, e outras manifestações artísticas. Na aparência, e só na aparência, a ficção depende apenas das palavras e dos sinais gráficos. Para uns, apenas das palavras; e para outros nem disso. Por que renunciar aos nossos recursos, se temos ainda um imenso campo de investigação?
Por isso, tenho defendido que a literatura se faz com simplicidade e sofisticação. Ou seja, deve chegar aos olhos do leitor com a simplicidade de um copo d’água, mas internamente está cheia de elementos técnicos, de recursos sofisticados, de elaboração cuidadosa. Assim é possível fisgar o leitor, e sempre o leitor, sem se tornar vanguardista nem experimental. Basta verificar, por exemplo, para começo de conversa, que o título do livro de Joyce é um achado sofisticado, mas belo e fácil. Na tradução clássica — pode ser chamada de clássica? Ou é apenas uma frase de efeito? — o título é Retrato do artista do quando jovem (Editora Abril, Rio de Janeiro, 1971). Sim, a tradução clássica foi feita — ou é feita? — por José Geraldo Vieira. Pois bem, em inglês há um “A” antecedendo a palavra “retrato”. Isso quer dizer: “Um retrato”. Não se pode simplesmente tirar o indefinido porque ele sugere uma oscilação, um movimento, uma inquietação. Não há o “retrato do artista”, mas “um retrato”, que indica a própria dúvida da juventude. Talvez pudesse escrever “retrato de um artista quando jovem”. Talvez. Correria o risco de oscilar com o artista e não com o retrato, no sentido mais amplo da expressão. Com o risco ainda maior de não ser Joyce. Pode parecer um detalhe, nem tanto. Mais uma vez: é preciso recorrer aos recursos ficcionais e não escrever de qualquer jeito, porque de qualquer jeito pode. E de qualquer jeito até pode. Afinal, papel aceita tudo.
No entanto, usando esses recursos tão simples, o escritor começa por trabalhar o inconsciente do leitor, que também agora já não é mais o mesmo. Pode até parecer detalhe, bobagem. Concordo plenamente. Mas não é assim. O enredo literário, por exemplo, pode se tornar ainda muito mais rico do que o enredo tradicional e emocional, porque envolve o leitor sem que ele perceba. Quero ser muito claro e direto: não faço censura a ninguém, não ofendo o escritor mais tradicional, ele também tem suas razões decisivas. Quero apenas abrir espaço para o debate, para a análise, para a reflexão. E só. Cada um com suas determinações. É só o que penso. E assim pretendo questionar os caminhos da literatura narrativa, não é mesmo?
Quanto a esses detalhes ou recursos íntimos da ficção, a esses mínimos elementos, tão mínimos que parecem sumir, chamo a atenção para uma aliteração recusada por José Geraldo Vieira. Preciso ressaltar, ainda, que tenho o maior respeito pelo trabalho dele, foi essa tradução que me fez admirar Joyce. Mesmo assim, a tradução é, por assim dizer, conservadora. E por isso rejeita o que o irlandês tem de mais precioso: as aliterações, as assonâncias, as elipses, os cortes, o ritmo e o andamento. Afinal, ficção também dança e canta, basta o narrador deixar. Agora o exemplo de uma aliteração desprezada por José Geraldo Vieira: “Seria uma sombria noite secreta”. A frase pede esse som, o som de um sono chegando, de um momento de oscilação mental, entre o sono e a vigília. O tradutor conhece outro caminho: “Ia ser uma noite sinistra e misteriosa”. Pode? Pode. O tradutor tem o comando do texto. Mas não deve. Tanto é verdade que, em seguida, vem uma cena revolucionária toda escrita no futuro do pretérito, nosso condicional: “seria”, “andaria”, “faria”. Como assim? O leitor pode não perceber. Acontece que o narrador usa o tempo verbal para sugerir essa variação mental feito a história tivesse de acontecer e, no entanto, já estava acontecendo. Ou teria acontecido. Não é uma maravilha?
Quero lembrar que a tradução que trabalha as aliterações é de Bernardina da Silveira Pinheiro (Alfaguara, Rio de Janeiro, 2006). Nesse sentido, ela se aproxima mais do universo joyciano, que aprofunda algumas lições de Flaubert. Insisto, e ainda mais uma vez, que estou tratando de Joyce, embora sem pedir que os leitores repitam tudo para avançar na narrativa. É preciso salientar que sempre peço sobretudo aos meus alunos que trabalhem com simplicidade e de uma forma capaz de convencer o leitor. Para alcançar, porém, essa simplicidade, é preciso estudo, e estudo e estudo. Muito e sempre.
Exercício deste mês? Trabalhe o uso do artigo indefinido em frases onde apareça o artigo definido. Muitas, muitas vezes. Se quiser falar comigo acesse o meu site. Lá tem um blog, onde podemos conversar.