Construir uma obra poética é profundamente doloroso e inquietante. Ocupa uma vida inteira com marcas e cicatrizes. Nem sempre oferece bons resultados, mas significa o sacrifício de uma existência. Não bastam apenas palavras, versos e rimas. Vai muito além, é muito mais. É preciso fazer a alma sangrar. Significa entrar no abismo sem lanterna na mão. Nem uma só chama indica o caminho. Ouvem-se gemidos, sussurros e risos soltos, às vezes gargalhadas, muitas gargalhadas. O sentimento do humano dilacera mais do que redime.
Escrever é como cortar os pulsos com uma gilete e deixar o sangue escorrendo veloz, secando as veias. Assim vive um poeta cuja vida está consagrada a uma obra. Nela passam os dias, os anos, os meses, as semanas registradas em palavras, versos, rimas, sentenças — que se avolumam em pilhas de papéis, e depois em livros que se espalham pelo mundo, conforme a direção do vento. Ou da vida.
Até porque a vida é tão irresponsável quanto os ventos. Um pouco de cuidado e se encontrará, em cada página, uma mudança de humor, uma alteração de sentido, uma sede de vida ou uma vontade de morrer. Ali estão os poemas — e os sonetos e as baladas —, e em cada um deles a certeza de que é necessário forçar o sentido da existência, essa vontade incrível de escrever, essa vontade de chorar em agonia da tarde.
Penso em tudo isso enquanto leio a Poesia reunida de Lélia Coelho Frota. “É uma virtuose”, diz Heloísa Buarque de Hollanda. “E, provavelmente, foi esse dado que me levou a relê-la tantas vezes, pelo simples prazer de apreciar sua desenvoltura técnica e seu talento voluptuosamente irônico.”
Sim, Heloísa tem razão, Lélia é vigorosamente elegante e terna, e neste vigor e nesta ternura, todos sabemos, se encontra a cativante agonia da poeta, que teve a vida inteira para nos revelar a sensação de que a realidade precisa de suas justas palavras, e que a dor de viver pede muito mais. Para construir sua obra, Lélia interpretou a existência procurando força até mesmo no folclore nacional, sem perder a elegância e a classe:
Chorem e chorem
Que meu boi morreu.
Ninguém teve amor
Maior do que o meu:
Que dor maior do que a dor
De não achar meu senhor
E mais ainda:
Depois desceu a ladeira
Certa cartomante faladeira
— Cadê o coração que deixei aqui?
Fincou o dedo magro
Em meu peito apagado:
— Gato comeu.
— Cadê o gato?
Foi pro mato.
(foi pro mato com meu bem)
E cadê esse bem
Que saiu com o gato
Que foi pro mato?
— Deu o tangolomango nele,
Marabá levou.
(numa hora escura
Marabá levou).
E cadê Tutu
— Está assustando menino.
— E cadê o menino?
Ah, esse foi meu bem.
Percebe-se, portanto, que a dor de viver acompanha, passo a passo, o caminho da poeta, mesmo quando ela dramatiza a aparente inocência. Assim, Heloísa prossegue, a modo de conclusão: “O que mais assusta no conjunto da obra de Lélia Coelho Frota, que a leitura deste volume agora nos permite, é a quantidade e diversidade de construções semânticas, falas, procedimentos, tonalidades, ritmos e universos semânticos que a poeta habita e dispõe com displicente naturalidade”. Assim se define este volume que, na verdade, é o projeto de vida inteira revelando os medos e os suores, as lágrimas e os risos, a paixão do dia-a-dia, a seqüência dos dias desta mulher que não perdeu o rumo de sua invenção, trabalhando as horas de solidão e angústia.
É por isso que o artista, o verdadeiro artista, está sempre sangrando. Sempre diante da sua agonia, que são os seus temas. E das palavras, dos ritmos, das imagens e da metáfora. Num jogo permanente de dignidade e força, de decisão e de coração. Já escrevi que o artista nunca conhece um instante de sossego, sobretudo considerando aqueles que constroem uma obra a vida inteira. Não basta um poema, um soneto, uma balada. É preciso ir mais longe, bem mais longe do coração selvagem da vida, investigando o ser e suas danações, sem parar, sem parar, porque a respiração está finda e não basta respirar fora d’água, não há como sair da água e os pulmões estão arrebentados. Que venha a luz, que venha a luz de onde ela possa vir, não importa. No momento certo, de acordo com a lei de Deus, deu o tangolomango em Lélia Coelho Frota e ela deixou o seu destino de sangue, seu rastro de angústia, enfim, seu destino de poeta, de testemunha do mundo, testemunha da longa vida que ela, porém, resume nestas palavras:
Mas isso foi só um dia,
Um dia só Nathanael:
Agora sou musa calada
Meus olhos são cor de mel.
NOTA
O texto Uma poeta é feita de sangue e de palavras foi publicado originalmente no jornal Pernambuco, editado em Recife (PE). A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.