Esquecido e silenciado? Quem?

As muitas técnicas narrativas empregadas por W. Somerset Maugham na obra-prima “Servidão humana”
W. Somerset Maugham, autor de “Servidão humana”
01/08/2024

A análise de um romance é sempre um risco. Um grande e grave risco. Até porque um romance não é apenas manifestação literária, um torneio de técnicas e de narrativas. É, na verdade, o mergulho na vida, na sociedade, um mergulho neste tormento que se chama alma, que, em muitos casos, parece um conceito abstrato, sem forma e sem conteúdo. Mas a obra de arte, sobretudo a literatura, dá uma forma à alma. Quando seguramos um livro, estamos com a alma do autor e do mundo nas mãos. Daí a extrema responsabilidade do texto e da leitura, ora como autores, ora como leitores.

Esta sensação de alma nas mãos deixa-me inquieto e sofrido quando estou diante deste romance magistral e perturbador que é Servidão humana, de W. Somerset Maugham, escrito, conforme se verá, numa terceira pessoa, na verdade uma falsa terceira pessoa, que consiste na terceira pessoa com técnica de primeira pessoa, simulando e seduzindo o leitor, que se vê aí enredado por uma estratégia capaz de levá-lo para um caminho “nunca dantes navegado”. Por isso, a leitura deste livro arde e queima, ainda mais quando se sabe que o narrador não é o autor. Sempre assim: o narrador é, seguramente, o principal personagem de um romance. Afinal, todo grade livro de prosa arde e queima.

A prosa literária, sobretudo o romance, a novela, o conto, torna a vida possível, de onde brota o saudável hábito de investigar a existência, mesmo naqueles personagens que parecem insignificantes, tirados do silêncio angustiante da vida e tornados magníficos pelo movimento das palavras.

Um exemplo muito claro e objetivo é este do trecho que examino:

De pé diante do cadáver, Bertha contemplou-o. Dissipou-se a lembrança do velho, e ela vi-o como de fato era, gordo com o semblante vermelho. Na face, pequenos vasos formavam uma nítida rede arroxeada As bochechas pareciam inchadas, como de fato eram ultimamente. As suíças desciam-lhe junto às orelhas. A pele já tinha rugas e asperezas. O cabelo rareava na fronte e o couro cabeludo aparecia branco e um pouco seboso. As mãos — que outrora lhe produziam frêmitos pela força que encerravam — tinham-se tornado repugnantes, embrutecidas. Aliás, há muito tempo que aqueles lhe vinham provocando um ligeiro nojo. Era essa a uma personagem que Bertha quisera gravar na memória . Virou-se, por fim, e voltou para o seu quarto.

Observa-se aqui, com maior precisão, a falsa terceira pessoa escondendo a primeira, que é também a voz do narrador revelada na técnica do olhar do personagem, que examina e revela a intimidade da alma de Bertha. Parece complexa demais e, no entanto, é a forma mais simples de escrever , chamando o leitor para o segredo da mulher, neste jogo de simulação através de um perfil físico-psicológico — o psicológico se revelando no exame de Bertha, impiedosa diante do morto, enojada fazia tempo, ou seja, o amor perdera, havia muito, a consistência.

Mas é preciso destacar a habilidade técnica do escritor, sem a qual jogaria fora a beleza do romance, apresentado em momento terrível e fúnebre o duelo que já se estabelecera entre marido e mulher, apesar do silêncio. Numa primeira pessoa, o texto correria o risco de se transformar num dramalhão, como ocorre muitas vezes no teatro ou no cinema. Um cenário humano que vale, por si só, num romance em que se questiona os chamados valores familiares.

Num só parágrafo muitas técnicas que levam e reafirmam a simulação e a sedução do texto literário. Falsa terceira pessoa, narrador, cenário humano, olhar do personagem. Tudo isso, porém, de acordo com a vontade do autor. Que, aliás, é quem tem o arbítrio da obra.

Mas não é possível esquecer, ainda assim, a opinião de Otto Maria Carpeaux:

Maugham deve a imensa popularidade ao seu grande talento de narrador, ao humor tipicamente inglês e, antes de tudo, à capacidade de fazer acreditar no que conta. Quase sempre fala na primeira pessoa do singular; e franco como um amigo que dá ao leitor a impressão de conhecer a vida e o mundo, vasto mundo.

Um artista deve parecer sempre disposto a inventar a servidão humana como é o caso de Somerset, mesmo rotulado de conservador, o que certamente o é no conteúdo. Sem esquecer que ele viveu e escreveu num grave momento de transição literária universal, até porque o romance alcançou o seu apogeu no século 19 com Dostoievski e Tolstói. O século 20 começava com revoluções literárias com Proust e Joyce, enquanto no Brasil surgia o Modernismo. No meio disso tudo estava este escritor proclamando que a vida poderia ser compreendida pela Verdade, Beleza e Bondade, com uma obra cheia de sofrimento e tristeza. Apesar de tudo, pode-se destacar que foi um escritor destinado a inquirir o humano através de uma espécie de inadequação ao mundo, mesmo materialmente milionário, com uma obra de intenso sucesso de público e de crítica, com inúmeras adaptações para o cinema.

Assim, também, é inquietante verificar como deve ter sido impiedoso viver entre a revoluções estruturais de Joyce e o memorialismo emotivo de Proust. Chamamos a atenção para o sucesso desse autor usar, aparentemente, e só na aparência, a técnica narrativa conservadora, o que é enganoso para quem não conhece as técnicas renovadoras, sobretudo com a habilidade de Somerset.

Este autor esteve também no centro de muito debate político, pois desconfiava-se que ele era agente secreto do serviço britânico porque, diziam seus acusadores, falava inglês e francês, o que não era surpreendente para um europeu nascido na Inglaterra. Mas um agente secreto era sempre um grande problema naqueles tempos de guerras mundiais. Talvez por isso mesmo Somerset tenha acumulando inimigos, de forma que hoje é basicamente esquecido; quase nunca citado, rotulado sempre de conservador e ultrapassado. De qualquer maneira, um artista, no caso do autor de Servidão humana, nunca é ultrapassado, a força de suas técnicas sempre estarão ali, vivas, vivíssimas, disposta encantar os olhos e os ouvidos dos leitores.

Finalmente, Servidão humana conta a história de Philip Carey, com aspectos autobiográficos do autor, que levou alguns críticos a fazer comparações com O retrato do artista quando jovem, de Joyce, apesar da falta de sofisticação estética.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho