Escalavra incomoda

Título do novo livro de Marcelino Freire contém um mistério que tanto pode ser a história que virá quanto o segredo de uma narrativa que jamais será conhecida
Marcelino Freire, autor de “Escalavra” Foto: Marco Del Fiol
01/01/2025

Um escritor radicalmente inventivo na busca da sentença justa, mesmo quando discorda dela mesma, não cabendo em si, pois assim é um escritor desses que não se repetem, não repete o tradicional, quer mais, muito mais, quer a palavra escalavra, ela mesma, que aponta para a novidade, para o belo, desconhecida, estabelecendo um novo caminho.

Mais de uma vez me perguntei se devia mesmo começar este artigo assim sobre este autor pernambucano, deixando para o leitor a tarefa de desvendar o livro que agora se apresenta. O livro começa, possivelmente no título, como é natural em qualquer livro, mas de forma diferente porque esta palavra contém um mistério que tanto pode ser a história que virá quanto o segredo de uma narrativa que jamais será conhecida, quem sabe o personagem que não se revelará jamais.

Peço desculpas, sei que estou confundindo o leitor ainda mais, com certeza, compreendo, até porque não há outra saída. Para falar deste livro é preciso decifrá-lo. E aí está a grande dificuldade. Não se pode recorrer ao convencional, às técnicas ditas naturais até porque aqui nada é convencional. E eis aí a primeira grande qualidade de Marcelino Freire neste texto que se esconde desde as primeiras palavras, desafiando o estudioso a dizer se são mesmo palavras. E como se escreve senão com palavras? Nada disso se explica. Pode-se dizer, neste caso, que também se escreve com mistérios. O grande desafio de Marcelino.

Sim, eu conheço tudo isso faz tempo. Quando minha primeira turma de Oficina de Criação Literária concluiu os trabalhos, faz tempo, pedi aos alunos que apresentassem um texto, do tipo conto curto para avaliação e aprovação. Espantei-me com Marcelino Freire, então meu aluno, imaginem a arrogância, que me apresentou um desenho, tarefa de arquiteto, onde se via um quadrado com retângulo e círculos, algo como a planta baixa de alguma coisa. Exclamei: “Enlouqueceu!”. Mas, professor de criação, não pedi explicações. Quem cria, cria assim mesmo, e não tem que explicar coisa nenhuma. Recolhi-me à minha insignificância. Decidi logo publicar os contos que recebera numa espécie de jornal colegial. Na gráfica, fui perguntando “Vocês não viram isso?”. É assim mesmo. Levei a pergunta ao autor. Eis a resposta: “É assim mesmo”. Ao lado dele estava seu primo Wilson Freire, médico e alquimista, portanto autorizado a repetir a resposta “É assim mesmo”. Nunca mais perguntei. Os colegas de turma silenciaram quando distribuí o tal jornal. “Vou ficar com isso até chegar a hora de revelar.” Quando topei com este livro, decidi logo: chegou a hora. Pareceu-me o título de algum manual de alquimia, se tiver dúvida pergunte ao primo. Não perguntei ao primo que, no momento, é meu médico naturalista, especialista em canabidiol para aliviar as minhas dores. Perguntei nada a Wilson Freire, mesmo elevado à categoria de meu médico provindo das sequelas do AVC que sofri em 2010. Recorri então à minha mulher, a poeta Marilena de Castro, também afeita às artes da bruxaria, fui perguntando a ela: “Que remédio é este?”. Aí ela respondeu muito séria: “Não é remédio, não, meu filho, é o título do novo livro de Marcelino Freire”. Decidi, então, abrir o livro para clarear um pouco minha ignorância. Encontrei assim uma espécie de epígrafe que diz: “Um escalavra o outro e se devoram. E sobra um osso no solo duro”(_Max Martins_).

Além de tudo, a orelha esquerda da obra, feito ponta-esquerda no futebol, procura esclarecer, muito mais do que o drible: “Escalavra é a história de um pai e de um filho e do silêncio sepulcral entre eles”. Falei em futebol pelo simples fato de que fui colunista esportivo do Diário de Pernambuco na Copa do mundo de 1998, cuja coluna chamava-se Carrero na Área. Por isso não me é estranho falar em futebol, sobretudo num artigo sobre Marcelino Freire e seu enigma. Numa das interpretações da palavra e, por ventura o seu conteúdo — o livro, é claro —, encontramos o seguinte na página 22:

A missão de levantar uma história _um livro megalítico que há muito tempo tento arquitetar com palavras, uma sobre as outras _sob as outras palavras_suspensas_blocos grosseiros de rochas _uma escrita nascida nos cemitérios aéreos da palavra _a minha prosa _literatura _quantas pessoas até hoje morreram para que eu colocasse de pé esta estrutura?

Portanto, um enigma que cria outro enigma mesmo quando abre clarões de entendimento e oferece um caminho de certeza, uma vereda, talvez, um jeito de se explicar que mesmo assim não se explica, talvez deixe o crítico com o livro na mão, tentando, ao menos ler a capa, pedra sobre pedra ou, como se diz mais à frente, pedra sob pedra — neste mistério que não acaba nunca, nem nunca nem jamais, para sempre, que se esforce o leitor para entender.

Daí é que o próprio autor se enreda e, novamente, expõe o enigma para decifrá-lo e assim vai, desdobrando enigma sobre enigma até esclarecer o leitor, numa busca desesperada e, é claro, esforçada, iluminada e bela. Uma das qualidades, portanto, desta obra-prima é a busca da verdade em torno de si mesma, como quem se descobre e recobre, revelando e revelando-se.

Enfim, “A história _a imagem de um menino que corre _de pernas bambas uma criança pelo campo _constrói um galope antes de construir os carros _um movimento pré-histórico _uma dança”. Portanto, antes de enigma, um segredo absoluto que se arrasta no tempo envolvido em muitas camadas, rolo de tecido que não termina nunca. Assim, tentativa de desvendar, esclarecer, estas coisas.

Escalavra
Marcelino Freire
Amarcord
152 págs.
Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho