Qualquer escritor medianamente informado sabe que Thomas Mann escreveu um Fausto moderno, que ele pretendia maior do que o de Goethe, apesar do pavor que sentia com o tema, tomado de inquietação e angústia, a ponto de retardar em muito a redação do texto. Durante 23 anos fez a preparação detalhada. No livro que escreveu para explicar a preparação do grande romance — A gênese do Doutor Fausto, um documento importantíssimo para quem quer escrever prosa de ficção —, ele confessa que reuniu tudo numa pasta, anotação por anotação, exemplo por exemplo, até sentir coragem para enfrentar o romance. Guardava, assim, tudo aquilo numa pasta volumosa até que na manhã do domingo de 23 de maio 1943 resolveu iniciar a escrita.
Era o pós-guerra e ele, morando em Nova York, acompanhava as notícias pelo rádio, sentindo o medo aumentar, mas não desiste. “A volumosa pasta com anotações já dava mostras da complexidade do projeto: cerca de duzentas páginas de formato A4, nas quais cumpria-se, desorganizado e enquadrado por traços contínuos, um conjunto variado de informações acessórias de diversas áreas, geográfica, linguística, sócio-política, teológica, médica, biológica, histórica, musical. E continuava colhendo e juntando dados úteis para o meu objetivo. E me dá uma espécie de alegria perceber que tanta concentração e fixação ainda me deixavam os sentidos abertos e receptíveis a impressões externas a este círculo mágico ao mundo de fora.”
Essa longa citação fui buscar no meu livro A luta verbal, onde questiono a criação literária, estudando grandes autores universais, entre eles Thomas Mann, Joyce, Umberto Eco, entre outros, e os brasileiros, a começar por Autran Dourado, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Ariano Suassuna, Ciro dos Anjos, entre outros…
Por isso mesmo, costumo dividir a criação literária em dois conteúdos: a) conteúdo material, anotações e recortes de jornais; e b) conteúdo literário. Personagens, diálogos, cenas, cenários, olhar do personagem, etc. Tudo isso exige estudos e pede uma permanente formação do escritor, cada vez mais distante da intuição.
Tudo isso deve ser visto e revisto na preparação da obra, ainda que seja um conto curto ou uma novela de poucas páginas. As anotações preparam a qualidade da obra, que só virá com o trabalho exaustivo…. Estudo, estudo, estudo, assim se faz um escritor ou, enfim, um artista. É claro que existem aqueles meramente intuitivos, Ferreira Gullar é um deles. Mesmo assim, ele pensa que foi intuitivo, mas sem negar que era um leitor obstinado. Leitor de poesia e leitor de ensaios, convivendo permanentemente com a poesia. Mesmo quando imaginava que estava longe dela.
Um bom poema fica circulando no sangue do poeta, mesmo quando ele acredita que desapareceu. Não é assim. Nunca é assim. Mesmo aquele poema menor ou ridículo da infância e da adolescência.
Muitas vezes ficamos trabalhando um verso ou uma frase que lemos num livro ou ouvimos numa conversa de bar, solto e vivo e, em busca de outros versos ou de outras frase, até formar um poema ou um conto, quem sabe, uma novela inteira.