O diálogo tem sido sempre uma técnica que me encanta na prosa de ficção. Pelo menos, aqui, não penso nem de longe no teatro ou no cinema. Esse fascínio vem do fato de que ele exerce várias funções no texto, mais ainda quando substitui o narrador, mesmo o narrador onisciente tradicional, cuja tarefa passa a ser a de um organizador ou de um harmonizador da história. Passa a ocupar a posição de um maestro, que reúne as vozes. Desse modo, pode-se observar que a história é contada pelos personagens num movimento sutil e leve, interno, às vezes, secreto.
Um exemplo de diálogo com efeito narrativo encontro, por exemplo, em Vida, jogo e morte de Lul Mazrek, do admirável Ismail Kadaré (Companhia das Letras, São Paulo, 2002). Na página 27, ele mostra uma conversa entre a personagem Violtsa e um funcionário da ditadura comunista na Albânia. Faz um jogo perfeito, de modo que muitas vezes um dos interlocutores desaparece completamente. Ou seja, o leitor sabe que houve uma pergunta, ou uma afirmação, mas, embora conheça quem fale, não percebe a presença. É algo que está escondido no contexto como se fosse uma narrativa convencional. Aqui e ali, o narrador dá indicativos, de forma que o leitor não se perde. Pelo contrário, reafirma-se. Basta prestar atenção.
Começamos pelo narrador através da personagem, numa falsa terceira pessoa, que dá início ao texto, e passa a voz ao funcionário num estilo livre indireto: “Fizera-se outra vez tão gentil e sensato como antes. Repetira que não queria dela nada de mais. Nem calúnia nem baixezas. Longe disso, só a verdade. Pelo bem do Estado e pelo bem de todos”.
Perceberam? Ainda não? É assim, vejam:
Voz de Violtsa: “Fizera-se outra vez tão gentil e sensato como antes. Repetira que…
Voz do funcionário: “…não queria dela nada demais. Nem calúnias nem baixezas. Longe disso, só a verdade. Pelo bem do Estado e pelo bem de todos”.
Por que falsa terceira pessoa? Porque está na terceira pessoa com técnica de primeira. É dessa maneira que se revela a falsa terceira pessoa, algo que seduz profundamente o leitor, porque nem sempre ele sabe quem está falando — se o narrador OU a personagem. Para decifrar a pessoa gramatical o escritor muda, por exemplo, o tempo verbal — ao invés de “queria”, “quero”, e suprime-se o pronome “dela”. A frase ficaria toda na primeira pessoa: “…não quero nada demais. Nem calúnias nem baixezas. Longe disso, só a verdade. Pelo bem do Estado e pelo bem de todos”.
Alguns autores escrevem naturalmente: “Fizera-se outra vez tão gentil e sensato como antes. Repetira que não quero nada de mais. Nem caluniar nem baixezas. Longe disso, só a verdade. Pelo bem do Estado e pelo bem de todos”.
José Saramago optaria pela primeira maiúscula ao mudar a voz: “Fizera-se outra vez tão gentil e sensato como antes. Repetira que não Quero nada de mais. Nem calúnias nem baixezas. Longe disso, só a verdade. Pelo bem do Estado e pelo bem de todos”. A falsa primeira pessoa, porém, oferece mais sutileza e torna a narrativa mais harmônica, mais misteriosa e mais leve. Podendo, entre outras coisas, esconder ou revelar algo ao leitor, sem que ele perceba.
No próximo parágrafo, o narrador onisciente, onisciente e inominado, começa um jogo de perguntas e respostas plenamente misterioso. Violtsa, escondida pelo narrador — escondida pelo narrador em falsa terceira mas a voz secreta é de Violtsa —, começa a perguntar e sua presença não aparece, nem mesmo a voz, apenas o leitor percebe. A uma pergunta não escrita, que se mostra na sutileza do texto, ela indaga: “Como se definiram por mim?”.
O funcionário responde em falsa terceira pessoa — cuidado imenso com isso: “Ele não ocultava que, antes de se fixar em seu nome, tratara, como se deve, de acumular o máximo de informações sobre ela”.
A outra pergunta feita pela personagem mas não registrada no texto: “Qual o resultado?”: “E o resultado preenchia exatamente o perfil das qualidades que se requeria do colaborador em questão: moça culta, sincera, honrada, avessa a subterfúgios”.
O diálogo prossegue da mesma maneira, o leitor apenas adivinhando a voz da personagem: “Por que não usa os velhos funcionários mais experientes, apesar das calúnias?”.
“Já não se pode avançar com esses velhos funcionários que buscam apenas vinganças pessoais. Ela tinha razão ao mencionar calúnias. Ela tinha razão ao mencionar calúnias. E o Estado fazia o possível para eliminá-las”.
Observaram bem? Observaram bem agora, apesar da cacofonia: “Ela tinha razão…” A resposta agora é direto, para ela, para Violtsa. Fica mais do que claro que eles estão conversando, embora o texto pareça uma narrativa comum. Às vezes uma narrativa, às vezes um diálogo secreto. O interlocutor nem sequer aparece, digamos, fisicamente, e nem a voz está escrita. Mas é ouvida. Com certeza.
Para encerrar, basta mais esse exemplo e ela indaga:
“Não é uma ilusão?”
Resposta:
“Talvez isso lhe pareça idílico demais? Pois eu a convido a raciocinarmos juntos. Existe no mundo algum Estado que deseje ser enganado? Penso que concorda comigo que um Estado pode ter mil defeitos, mas nunca o de querer ser enganado. O Estado albanês não é exceção. Ele quer saber a verdade. E a verdade não será conhecida por meio de gente senil ou intrigante, mas sim por pessoas como você”.
O “você” instaura definitivamente o diálogo. Afinal, é conversando que a gente se entende, não é?
É assim que o narrador onisciente — onisciente e inominado —paira sobre o texto e permite uma leitura do diálogo sem interrupções. Mas é claro que ninguém alcança esse nível sem trabalho e exercícios, que devem ser feitos diariamente.