Duelo silencioso e digno

A partir dos anos 1930, Graciliano Ramos e Jorge Amado travaram uma disputa velada a respeito da linguagem do romance brasileiro
01/02/2022

No meu livro A luta verbal, que está sendo publicado pela Iluminuras, irmã de luta, examino com atenção as possíveis contradições de dois gigantes da literatura brasileira, Graciliano Ramos e Jorge Amado, que escreviam com a “faca nos dentes”, ao mesmo tempo convergentes e divergentes, assim, com rima e tudo.

Havia no ar uma ameaça velada de facadas e tiros, mas o respeito doutrinário evitou. Foi assim o duelo respeitoso e digno entre Graciliano Ramos — em cujas veias escorriam o conservador e o rebelde — e Jorge Amado — revolucionário das letras e condutor de destinos. Não chegaram a ser desafetos, mas trocaram sopapos silenciosos nos textos e nunca nas palavras gritadas. Ainda nas Alagoas, o autor de Vidas secas, rigoroso com a limpeza do texto literário, escreveu sobre o baiano, a quem já admirava, mesmo sendo um autor desconhecido, talvez inédito. Mais tarde, chamado a escrever com a linguagem de Amado, reagiu de forma indireta, incisiva: “Nada tenho contra Jorge Amado, mas que sei fazer é o que está nos meus livros”.

Aí entrava o conservador que respeitava a sintaxe tradicional, incondicionalmente, a ponto de escrever uma já famosa e insubstituível “poética da linguagem”, que no meu silêncio irônico da casa chamo de “poética das lavadeiras”, numa convocação desesperada para o acerto da linguagem gramatical e brilhante, sem erros, sem defeitos. No entanto, aí mesmo circulava o rebelde, que se aliava aos revolucionários do mundo, num manifesto desejo de combater os conservadores. É um choque, sem dúvida, um choque que Graciliano soube driblar com habilidade, mesmo que não fosse um homem hábil. Talvez para conciliar as suas convicções literárias com a admiração pelo escritor baiano, para quem reservava a melhor amizade, ainda que divergente.

Eis a rigorosa, rigorosíssima “poética da linguagem”:

Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem o seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da Lagoa ou do riacho. Torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso: a palavra foi feita para dizer.

Palavras de conservador, mas rebelde quando se trata de examinar este texto de Jorge Amado na abertura do romance Suor:

Os ratos passaram, sem nenhum sinal de medo, entre os homens que estavam parados ao pé da escada escura. Era escura assim de dia e de noite e subia pelo prédio como um cipó que crescesse no interior de um tronco de uma árvore. Havia um cheiro de quarto de defunto, um cheiro de roupa suja, que os homens não sentem. Também não ligavam aos ratos que subiam e desciam, apostando carreira, desaparecendo na escuridão.

Graciliano escreve contrariando a sua própria poética:

Um sopro de poesia varre todas as imundícies, perfuma esse monturo social. Muitos crimes circulam nas páginas do escritor baiano, mas circulam discretamente sem a carranca trágica do dramalhão, sem o adjetivo campanudo que deforma os atos simples e naturais. Furtos, roubos, contrabandos, navalhas e punhais, brigas em quantidade.

Agora, uma das cenas mais fortes de Suor:

Tirou o vestido, namorou o quadro da primeira comunhão e abriu “o moço loiro”, de Macedo. O mormaço pesava como chumbo. Foi-se embalando na leitura. Deixou o livro e ficou olhando para o lençol, pensando nessas coisas. O percevejo subia pela sua coxa alva e bonita. Calcou a unha e o sangue preto fez uma pequena mancha na perna. Linda, porém, viu a mancha enorme e começou a chorar baixinho bem apertada ao travesseiro. Lembrou-se de Julieta.

Tudo isso faz sentido e um grande sentido para Graciliano Ramos, que se irrita com os livros brasileiros, reclama de uma literatura chamada de “boa” e de “elegante”, produzida pelos limpos de corpo e de alma, gordos escritores que não botam chinelos para ir à rua. De qualquer maneira é preferível manter o duelo silencioso, conservador e rebelde:

Há uma literatura antipática e insincera que só usa expressões corretas, só se ocupa de coisas agradáveis, não se molha em dias de chuva e por isso ignora que há pessoas que não podem comprar capas de borracha. Quando a chuva aparece, fica em casa, bem aquecida, com as portas fechadas. Não faz sentido manter a poética da linguagem diante de um mundo proletário.

Quase na mesma época, porém, falando do livro de uma estreante, baixava as armas e escrevia:

O romance de estreia da Sra. Diná Silveira de Queiroz merece um ataque. Primeiramente, a jovem paulista não escreve bem: “Letícia olhou para fila de parreiras, para estrada que subia para longe, para lugares escondidos para sempre”.

Incoerência porque no início de Suor há também a insistência da preposição, contra o qual ele não reclama: “Havia um cheiro de quarto de defunto, um cheiro de roupa suja, que os homens não sentiam”. O rebelde venceu o conservador? Há aí, claramente, um duelo silencioso e digno.

Não foi por acaso que, no artigo sobre Diná, escrevera:

Eu não devia falar em semelhantes coisas, mostrar ao público inadvertência de alguém que, no preparo de duas linhas, meteu a mão na lata das preposições e encaroçou um período com repetições desnecessárias.

Nas entrelinhas, uma preocupação de Graciliano que, parece, com habilidade, desculpar-se com a direção do Partido Comunista que exigia dele um cuidado maior com a linguagem das pessoas comuns, sem a riqueza da invenção, seguindo as orientações de Andrei Zhdanov, encarregado da censura stalinista.

Aliás, essas orientações eram o tormento de Graciliano Ramos, sempre pressionado por Arruda Câmara e Astrogildo Pereira, fartamente documentadas por Dênis de Moraes e Joselia Aguiar, nas biografias de Graciliano Ramos e Jorge Amado, respectivamente. Mesmo na época não eram segredo pra ninguém.

Em certo sentido, sobretudo no capítulo da denúncia social, o escritor alagoano até admitia a procura de uma linguagem própria, mas tinha reservas naturais:

Os nossos romancistas não saíram de casa em busca de reformas sociais: a revolução chegou a eles e encontrou-os atentos, observando uma sociedade que se decompõe. Está claro que ninguém aqui pretende haver construído monumentos. Estamos ainda no começo que nos dá grande quantidade de volumes todos os anos. Nessa produção excessiva há falhas, marcas de trabalho feito às pressas. “Naturalmente porque estamos a correr sem nos termos acostumados a andar.”

Não deixa de ser reconhecimento de uma linguagem a ser trabalhada. O conselho também imaturo: “Escreva como puder. Não fuja da linguagem do povo”.

Jorge Amado, com a ajuda da Academia dos Rebeldes, desde cedo conhecia a linguagem do povo e levara-a para seus romances, sobretudo os iniciais, realizando, de pronto, aquilo que veio a se chamar o Romance do Nordeste. Com a linguagem que lhe competia. Graciliano conhecia e dominava a linguagem formal, ao lado dos consagrados e clássicos, em várias línguas, especializando-se em correção e revisão de textos. O duelo surdo e digno estava declarado. Dois gigantes em caminhos opostos.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho