Drama da alma em conflito

O ouro de Quipapá, romance do francês Hubert Tézenas, apresenta pelo menos três grandes qualidades narrativas, não muito comuns na ficção tradicional
Hubert Tézenas, autor de “O ouro de Quipapá”
29/01/2015

O ouro de Quipapá, romance do francês Hubert Tézenas, apresenta pelo menos três grandes qualidades narrativas, não muito comuns na ficção tradicional — rapidez, investigação exemplar dos personagens e construção correta dos diálogos —, de forma que o leitor mergulha com todos os sentidos no drama da condição humana, mesmo que o autor nunca se demore na imersão da psicologia dos personagens. Assim, pode-se ler este livro com muito agrado sem cair na armadilha de monólogos ou solilóquios demorados que, muitas vezes, tornam a leitura enfadonha, embora aparentemente sofisticada.

Em certo sentido, pode-se classificá-lo como um romance de personagens, mesmo que a história seja muito forte e atrativa. Desde o início, Alberico Cruz mostra sua decisiva presença narrativa. Mas ele não é apresentado por dúvidas ou questionamentos. Basta observar o que o personagem tem de mais característico — o olhar atento e apaixonado, que desenvolve, muitas vezes, as cenas paralelas; e que por isso mesmo nunca coloca o leitor na ação central.

A rapidez é uma das propostas de Italo Calvino para o próximo milênio. Mas o que é, enfim, esta rapidez? Contar, contar, contar e deixar o leitor a ver navios? É preciso ter calma, é preciso ter cautela. Em O ouro de Quipapá, Hubert deixa bem clara esta questão.

O texto sem dúvida é rápido, mas usa uma técnica bem contemporânea que seduz o leitor: o olhar do personagem. Isto significa que o narrador privilegia as cenas — mais exatamente, as cenas sobre cenas, numa sequência vertiginosa que vem muito do chamado romance noir —, sem a imersão vertical na psicologia dos personagens, evitando que a narrativa se perca em reflexões. Para alcançar esse efeito, Hubert centralizou as ações muito em Alberico Cruz, que se transforma, nesta história de crime na zona da mata de Pernambuco, num protagonista curioso. É uma história de crime, de buscas, de procuras, de obstinação humana.

Aí entra a habilidade técnica do autor, permitindo que o olhar do personagem exercite sua capacidade crítica, sobretudo a crítica social ao relatar — mesmo de soslaio — as condições sociais do homem nordestino e pernambucano, pressionado pelas inacreditáveis injustiças, povoando áreas inóspitas e situações lamentáveis de existência. Por isso mesmo, chamaria a atenção aqui para mais um dos destaques deste romance escrito por um francês e talvez devido a isso preocupado com as condições às vezes subumanas da existência tão árida e tão difícil nesta região do país. Hubert viveu durante anos nesta área, quando teve ocasião de experimentar a amargura e a força, o destino de cidadãos e de camponeses regionais.

Mesmo assim, do ponto de vista técnico, pode-se destacar que o narrador evita, de forma bem clara, os monólogos que comumente impregnam a crítica política ou social, sobretudo de estrangeiros. Verdadeiras ladainhas sofríveis, com ares de sociologia e de ciência política amadora. O olhar crítico que observa uma mulher é o mesmo que examina um conflito social. Sem paixões políticas inúteis. E sem teorias políticas levianas próximas do manual escolar.

É também devido a esta técnica que o narrador constrói Alberico Cruz, este personagem inquietante desde o momento em que sai de casa para trabalhar até se envolver nos acontecimentos que resultarão na história do O ouro de Quipapá. A princípio, apenas um cidadão comum, um funcionário que deseja tão somente cumprir suas obrigações naturais, embora também desde o início esteja movido por suas curiosidades e aptidões. A cena em que ele constrói com o olhar, a seu modo, outra personagem, ainda no começo do romance, é muito bem elaborada, verdadeiramente. Contida e elaborada, sem palavras inúteis e sem destaques desnecessários.

Em seguida, e não somente em terceiro lugar, mas com igual importância, vem a construção dos diálogos. Rápidos, incisivos, curtos. Às vezes sem travessão, às vezes com travessão, mas dotados de uma técnica capaz de seduzir o leitor.

Por tudo isso O ouro de Quipapá é, com certeza, um grande livro.

NOTA
O texto Drama da alma em conflito foi publicado originalmente no suplemente Pernambuco.

O ouro de Quipapá
Hubert Tézenas
Trad.: Fernando Scheibe
Vestígio
169 págs.
Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho