Com o surgimento do narrador oculto — aquele que narra sem opinar, apenas mostrando as cenas e os personagens que, afinal, decidem o destino da história —, o narrador onisciente — tagarela e fanfarrão — fica na sombra, muitas vezes esquecido completamente pelo criador. Mario Vargas Llosa escreveu A tentação do impossível sobre Victor Hugo e Os miseráveis, para destacar a figura do narrador onisciente, que define como “um narrador linguarudo que surge continuamente entre as suas criaturas e o leitor. Presença constante, arrebatadora, a cada passo interrompe o relato para opinar às vezes em primeira pessoa…”.
Esse narrador torna os romances longos e reflexivos, na maioria das vezes impondo a ideologia do autor e forçando o leitor a acreditar naquilo que nem mesmo acredita. No entanto, o narrador oculto mais sugere do que diz, sobretudo com a organização narrativa, fazendo com que o leitor faça, ele próprio, a ideologia do texto e, mais do que isso, a estética da obra que está lendo. A obra de ficção torna-se assim um jogo de armar e abre maiores perspectivas para a criação.
Em Anna Kariênina, por exemplo, Tolstói usa os dois narradores com incrível habilidade, sobretudo no primeiro capítulo, quando situa a infelicidade das famílias, que acentua e destaca logo na primeira frase. Aliás, uma frase-farol, que vai iluminar e orientar toda a narrativa e que se tornou célebre: “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes à sua maneira”.
Depois desta frase, típica do narrador onisciente, Tolstói recorre ao narrador oculto para apresentar o tema do romance, recorrendo aos fatos e às consequências, de forma a situar perfeitamente o leitor:
Havia grande confusão em casa de Oblonsky. A esposa acabava de saber das relações do marido com a preceptora francesa e comunicara-lhe que não podiam mais viver juntos. Durava havia três dias a situação, para tormento não só do casal, mas também dos demais membros da casa, e da criadagem. Todos se davam conta de que não havia mais razão para manter aquele convívio, sentindo que as pessoas que por acaso se encontrassem numa estalagem teriam talvez mais afinidades entre si. Ela, a esposa, não saía dos seus aposentos; há três dias que o marido não parava em casa, as crianças corriam de um lado, como que perdidas, a preceptora francesa se indispusera com a governanta inglesa e escrevera a uma amiga pedindo que lhe arranjasse outra colocação; na véspera o cozinheiro abandonara a casa à hora do jantar; o cocheiro e a copeira tinham pedido que lhe fizessem as contas.
Percebe-se, assim, através da frieza dos fatos sem reflexões, o clima que o leitor encontrará no livro, mesmo que os acontecimentos não sejam aí os mais fundamentais. Aliás, este é um narrador oculto, por assim dizer didático, no sentido da montagem dos fatos, apenas, sem explicações e, como já se disse, sem reflexões.
Este artigo pretende, por isso mesmo, ser didático, para demonstrar, por exemplo, as particularidades óbvias de um e de outro narrador.
Vejamos, em seguida, as profundas diferenças entre os dois. O narrador onisciente não apenas conta, mas questiona o que conta. Pergunta e responde Mario Vargas Llosa:
Como é esse narrador? Suas características mais óbvias são a onisciência, a onipotência, a exuberância, a visibilidade, a egolatria. Escreve o narrador do romance:
Naquele momento sucedeu-lhe o que sucede a qualquer pessoa obrigada a confessar algo vergonhoso. Não soube encontrar expressão adequada à situação. Invés de ofender-se, negar, justificar-se pedir perdão ou mesmo indiferença — qualquer coisa teria sido melhor, aparece-lhe de súbito na fisionomia, involuntariamente, o sorriso habitual, bondoso e estúpido.
A diferença entre as duas narrativas é forte, decisiva e didática. Na primeira, o importante são os fatos; na segunda, o exame psicológico dos fatos, o que só um narrador onisciente pode fazer, o que exige que ele conheça a reação física do personagem e a sua psicologia, que o narrador, ou o próprio autor chama de reflexos cerebrais.
Para continuar a definição deste tipo de narrador, Vargas Llosa segue:
Onisciente e exuberante, o narrador também é narcisista. Não consegue parar de mencionar-se, de lembrar-nos que está ali e que é ele quem decide. O que conta e como se conta. Sua silhueta se antepõe continuamente à dos personagens até apagá-los. Suas artimanhas para exibir-se são múltiplas. A mais comum: a falsa modéstia, dizer-nos que não quer estar ali ou que as opiniões que ouvimos são de um personagem, não suas, como ocorre quando Jean Valjean compara — Genet avant la lettre — a prisão e o convento, os presidiários e as religiosas. No que foi dito acima é excluída toda e qualquer teoria pessoal. Somos apenas o narrador e adotamos o ponto de vista de Jean Valjean, nada fazemos além de traduzir as suas impressões.
Basta que ele diga isso para que não diga a verdade; explicitar-nos a sua posição é uma maneira de se transformar no centro do relato, uma maneira flagrante de existir.
Tolstói consegue, porém, reunir s dois narradores num só no seguinte texto:
Quando Oblonsky perguntou a Levine o que tinha ele vindo fazer em Moscou, este enrubesceu, coisa que o indispôs consigo mesmo, pois não pudera responder-lhe “para me declarar à tua cunhada”, apear de ter vindo exclusivamente para esse fim.
No primeiro trecho da frase se percebe o uso do discurso indireto livre e, seguida, o uso da narrativa tradicional com a criação de uma resposta entre aspas, que restaura a presença do onisciente.