Durante os meus estudos para a Oficina de Criação Literária permanente que mantenho no Recife, dei de cara com uma curiosidade que me inquietou muito: a tradução da novela O velho e o mar, de Hemingway, tem dois começos diferentes, conforme atestam as edições de 1975-76 e de 2015, ambas do português Fernando de Castro Ferro, sendo que a primeira é revista por José Batista da Luz. Somente a segunda corresponde ao texto original em inglês. A primeira é, por assim dizer, o texto mais louvado e mais imitado. O volume de 1975-76 registra a 17ª edição, enquanto o de 2015 marca a 86ª edição.
Não há nenhuma nota explicativa nas duas edições, mas sabe-se que Fernando de Castro Ferro é um dos introdutores da obra do escritor norte-americano na língua portuguesa, tido e havido como extremamente zeloso e competente. Não estou aqui questionando a competência dos dois, mas registrando um fato que me parece excepcional que exige um cuidado maior da editora Civilização Brasileira, hoje integrando o Grupo Record. Segundo a edição inicial, o livro começa assim:
O Velho chamava-se Santiago. Dia após dia, tripulando sua pequena canoa. Ia pescar no Gulf Stream. Mas nos últimos oitenta e quatro dias não apanhara um só peixe. Nos últimos quarenta levara em sua companhia um rapazinho, para ajudá-lo. Depois disso, os pais do rapaz, convencidos de que o velho se tornara um salao, isto é, azarento da pior espécie, resolveram que o filho fosse trabalhar noutro barco, que trouxera três bons peixes em apenas uma semana. O rapaz ficava triste ao ver o velho regressar todos os dias com a canoa vazia e ia sempre ajudá-lo a carregar os rolos de linha , ou o gancho e o arpão, ou ainda a vela que estava à volta do mastro. A vela fora remendada em vários pontos com velhos sacos de farinha e, assim enrolada, parecia a bandeia de uma derrota permanente.
O velho pescador era magro e seco e tinha a parte posterior do pescoço vincada de profundas rugas.
Na edição 86ª, do mesmo tradutor e da mesma editora, a novela começa assim, com um tom de fábula, mas completamente diferente. Na verdade, um livro de dois autores, não de um só. Vejamos:
Ele era um velho que pescava sozinho em seu barco, no Gulf Stream. Havia oitenta e quatro dias que não apanhava nenhum peixe. Nos primeiros quarenta, levara em sua companhia um garoto para auxiliá-lo. Depois disso, os pais do garoto, convencidos de que o velho se tonara salao, isto é, um azarento da pior espécie, puseram o filho para trabalhar noutro barco, que trouxera três bons peixes em apenas uma semana. O garoto ficava triste ao ver o velho regressar todos os dias com a embarcação vazia. E ia ajudá-lo sempre a carregar os rolos de linha, ou o gancho e o arpão, ou ainda a vela que estava enrolada à volta do mastro. A vela fora remendada em vários pontos com velhos sacos de farinha, e, assim enrolada, parecia a bandeira de uma derrota permanente. O velho pescador era magro e seco, e tinha a parte posterior do pescoço vincada de profundas rugas.
O leitor desavisado pode dizer: “Mas é a mesma coisa”. Não, em absoluto, não é a mesma coisa. Na edição de 1975-76 a primeira frase é direta, incisiva e segura: “O Velho chamava-se Santiago”.
Aí o narrador mostra o pulso e coloca o leitor dentro da narrativa imediatamente. Basta o nome do personagem e sua condição humana, tudo está resolvido. Depois a narrativa passa pelas curvas e oscilações. São, mesmo assim, dois grandes exemplos para estudo.
Parece, porém, que Hemingway nunca teve sorte com tradutores portugueses. Monteiro Lobato, por exemplo, traduz assim a primeira frase de Adeus às armas: “No último verão daquele ano”. Ora, o ano só tem um verão.