Coincidências com Graciliano

A trajetória de dois escritores que saem do sertão rumo ao mundo da literatura
Graciliano Ramos por Fabio Abreu
01/05/2024

O magnífico romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, entrou em domínio público neste ano — fato que gerou polêmicas entre familiares do autor e editoras. Talvez seja desatenção minha, mas as datas em nada me interessam. Concentro-me nos equívocos de indicações que esta obra provoca, inclusive no rótulo de regionalista, que ganhou deste o princípio. Não, não é uma obra regionalista, destacando-se com inúmeras mudanças estruturais, que terminam por reinventar a literatura brasileira. O que me interessa, em última análise, são as coincidências que encontro entre minha vida literária e a de Graciliano, que me impressionam profundamente.

Coincidência ou não, o certo é que minha vida literária tem vários encontros iguais ou parecidos com o mestre Graciliano Ramos, algo que me envaidece muito, é claro. Nascemos de pais comerciantes, em cidades do sertão. Fomos criados no interior das lojas, atrás do balcão, lendo ou cochilando, pela falta de movimento intenso, duas ou três almas perdidas passavam pela calçada em frente à loja durante todo o expediente, com exceção dos dias de feira, que marcaram profundamente vidas por tudo de trágico e de cômico que exibem na agitação dos matutos. A feira, numa cidade do interior, tem muito de festa, com seus personagens entrando e saindo daquilo que se parecia muito com o teatro e, quem sabe, um pouco de cinema. Nunca fui obrigado a trabalhar, muito pelo contrário: meu pai, também Raimundo, pedindo-me para estudar, com a convicção: “Não quero filho meu atrás do balcão. Basta que eu fique, para educar meus filhos”. Onze, aliás. Fomos onze irmãos, mais tarde advogados, seminaristas, médicos, professores, e este jornalista/escritor, sem contar com meu irmão Felipe, que por pouco não ostentou o diploma de arquiteto, já fazendo o curso, atraído pela música. Seguia os passos deste seu irmão-escritor, durante muito tempo fui músico profissional, ora na Banda Filarmônica Paroquial do Salgueiro, ora nos Cometas, ora nos Tártaros, ora em bares e casas de festas. Com amigos que tenho ainda hoje.

Uma segunda coincidência registra o começo da nossa atividade literária: ainda menino, aí pelos dez anos, Graciliano escreveu um poema inspirado num mendigo de Palmeira dos Índios, em Alagoas. O que veio a acontecer comigo, embora em circunstância diversa; em 1960, fui enviado para o internato do colégio Salesiano do Sagrado Coração de Jesus, no Recife, e logo no princípio tomei conhecimento de um concurso que premiaria o melhor soneto escrito por aluno interno. E logo escrevi o soneto, inspirado num mendigo, naturalmente sem explicação. O soneto foi rejeitado sob a alegação de que não obedecia aos rigores da métrica e da rima. Não importa. O que importa mesmo é que o soneto foi escrito e que a coincidência existe.

Vidas secas e Sombra severa
A terceira e mais importante coincidência vem de uma historinha que me agrada muito, muitíssimo. No começo da década de 1980, a editora José Olympio, mesmo atravessando uma fase dificílima, publicou a minha novela Sombra severa, que ganhara um prêmio literário muito importante no Recife, e o prêmio era, justamente, a publicação por esta decisiva editora, responsável pelo lançamento de importantes nomes da literatura brasileira, começando por Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, Gilberto Freyre, Ariano Suassuna. Depois de discutir a capa no departamento de marketing, fui encaminhado ao setor de preparação de originais. Ali conheci Daniel Pereira, um senhor que me atendeu com o máximo de gentileza. Logo foi me perguntando por que eu colocara no livro um título tão longo: O misterioso encontro do destino com a sorte, título, aliás, que convive comigo há muitos anos.

Tentei justificar dizendo que era uma homenagem ao folheto de cordel, integrando-me ainda mais ao Movimento Armorial. Ele aplaudiu, acrescentando que Ariano ficaria muito satisfeito. Mas insistiu, mesmo assim, para que procurasse um título breve que revelasse, com firmeza, o universo de sua novela que conta a luta de dois irmãos — Judas e Abel — pela mesma mulher: Dina. Foi quando me falou em sombras, destacando que os personagens eram uma “sombra severa”. Achamos o título. Tempos depois, lendo a biografia escrita por Denis Moraes, O velho Graça, descobri que Daniel fizera o mesmo com Graciliano, que chamara Vidas secas, inicialmente, de O mundo coberto de penas. Convenceu o grande escritor alagoano a intitular o livro de Vidas secas. Na verdade, um achado para um dos grandes momentos da literatura brasileira. De minha parte, ainda agradeço a Deus pelo título da minha novela tanto em português, como em francês: Ombre sèvère, e em romeno: Greutatea umbrei. Obrigado, Daniel Pereira. Sem esquecer uma conversa antiga que tive com meu pai, Raimundo Carreiro de Barros, que me dissera: “Só acredito que você é mesmo um escritor se publicar pela José Olympio”.

Lembro, ainda, neste campo das coincidências, que começamos jornalistas: Graciliano no Rio de Janeiro, revisor do Correio da Manhã, e eu repórter no Diário de Pernambuco, onde trabalhei por trinta anos. Isso não quer dizer que me assemelho a Graciliano — ele, genial; e eu, este pobre escritor provinciano. As coincidências servem apenas para registrar que percorremos o caminho áspero do sertão para o litoral como bons retirantes.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho