Se Flaubert deu passos expressivos para reformar a técnica do romance, Machado de Assis não deixou por menos. O brasileiro lutou para descaracterizar o narrador convencional usando dois narradores em Dom Casmurro, como demonstrado por Fernando Sabino em O amor de Capitu. Bentinho seria responsável pela narrativa linear, enquanto Dom Casmurro usaria as digressões, as crônicas do Rio de Janeiro antigo e as mudanças narrativas, de forma a confundir o leitor na compreensão do caráter de Capitu, que surge como uma personagem de criação indireta, ou seja, personagem cuja vida pertence, em princípio, apenas ao narrador — ou narradores —, sem passar pelo julgamento dos outros personagens, nem sequer pelo do autor.
Assim, Bentinho domina a história, domina as personagens e somente ele pode defini-la. Capitu não pode ser defendida por outros personagens e nem mesmo por ela própria, cujas palavras e revelações também pertencem ao narrador. Mesmo no raro diálogo entre os dois, no capítulo 138, ele procura, estrategicamente, falar com o leitor, sem dar uma verdadeira resposta a ela, distorcendo, assim, a informação. Se o leitor estiver lembrado, o diálogo acontece no instante em que Capitu surpreende um possível Dom Casmurro dizendo ao menino que não é o pai dele. Aliás, Bentinho só se torna Dom Casmurro bem depois da morte de Capitu.
O leitor ou o crítico pode muito bem verificar, portanto, que Capitu só existe na mente do narrador. É a Capitu que todos nós conhecemos, misteriosa, frívola e sedutora. Ninguém discute isso em todo o romance. Só temos algumas informações no começo da história, e já na perspectiva de Bentinho. Ele informa e julga. No citado capítulo 138, ela pede a Bentinho que prove a traição. Apesar do travessão — que distingue a mudança de voz —, ele faz um comentário a respeito de testemunhas na justiça, mas não responde diretamente. Mesmo assim, o leitor fica convencido da resposta. Uma estratégia narrativa sutil e muito criativa. Algo genial. Creio mesmo que esta é a razão pela qual a personagem não se entrega completamente e cria o mistério narrativo de Machado, sutilíssimo na arte de seduzir o leitor sem expor muito, dizendo e escondendo de uma forma muito clara, mas de alguma maneira obscura, de modo que cria mistério com os elementos internos da narrativa. E com imensa facilidade. Neste caso, basta colocar um travessão naquilo que pode ser apenas um comentário do narrador na voz do personagem.
Em Madame Bovary, Emma está sempre exposta aos comentários: as ações são reais e os amantes existem de verdade. Não é o caso de Capitu. Ela existe, mas o seu caso não é tratado por ninguém: fora Bentinho, ninguém sabe de nada, e Bentinho deixa tudo na sombra, em silêncio, e, naquele momento grave do diálogo, o autor faz uma modificação gráfica que satisfaz o leitor, mas não a própria personagem. É importante ler criticamente todo o capítulo que, por assim dizer, começa no capítulo anterior, no qual Bentinho vive o drama de matar ou não o menino.
Na verdade, ele comprou veneno de rato e está em dúvida se o coloca ou não no café da criança que corre para ele chamando-o de pai. Ele responde “não sou seu pai”, e é aí que Capitu parece estranha e pergunta o que está havendo; Bentinho explica e aí tem início o diálogo. Isso tudo reforça a idéia da personagem de criação indireta. Ninguém comenta, ninguém analisa, ninguém diz nada. Só o narrador, e é através dele que a história chega ao leitor.
Depois disso podemos responder afirmativamente a pergunta “Capitu traiu ou não traiu Bentinho?”, até porque esta é a vontade do próprio personagem expressa na técnica que Machado de Assis criou para contar a história. Algo genial, sem dúvida. Machado recorreu à criação de uma nova e surpreendente técnica para intrigar o leitor com enorme simplicidade, e uma tal simplicidade que ainda gera dúvidas nos nossos dias, muito mais de um século depois. Está aí a grandeza da técnica na prosa de ficção.