Aula com Dostoievski, Nabokov e Umberto Eco

A literatura é uma montanha íngreme a ser escalada com sangue nas mãos
01/11/2024

Quando pensei no título para esta coluna, imaginei algo como: Umberto Eco ensina o caminho da boa ficção. No entanto, percebi que era um erro lastimável, um erro sem conta: não existe boa ou má ficção. Tudo é ficção. Houve um tempo exagerado que trombeteava: Dostoievski não sabe escrever. Imagine tamanha bobagem. O que Dostoievski fazia era desobedecer aos cânones tradicionais.

Disposto a discutir ou a debater os temas universais, quase sempre na velha e tradicional Rússia, que Thomas Man chamava de Santa Rússia, justamente por causa dos grandes escritores Dostoievski e Tolstoi, além de Tchekhov e Gogol — um país que gera tão magníficos intelectuais só pode ser Sagrado ou Santo —, Dostoievski se debatia entre personagens, parágrafos e temas, sobretudo temas com a fúria de gigante — pouco lhe importando as belas palavras bem arrumadas, ou a sequência de cenas sedutoras, no sentido mais amplo e mais envolvente que conhecemos desde o cinema e o teatro. Saía da eclosão para o texto com o vigor de quem não conhece as regras fundamentais. Daí por que criou o estilo chamado polifônico. Enquanto escrevia, escutava, digamos, a voz do tema ou dos personagens. Vozes que entortavam as frases, mudavam a sequência das palavras, invadiam o terreno das dores do mundo. Nada de palavrinhas empoadas, bonitinhas, vulgares, o impulso ganhava uma força magistral.

Eis aí um tema para muitos debates, até porque o personagem grande é criado com sensualidade, que não é coisa vulgar, de sexo ou de gemedeira, mas daquele gosto pela vida cercada de dor e de agonia de quem sabe que a vida deve ser tratada com muita força, feito um lutador que a enfrenta com pedras e tijolos, e não apenas com palavras arrumadinhas e cenas de pôr do sol.

Nabokov escreveu, por tudo isso, que Dostoievski não era romancista. Os longos discursos dos personagens, diz ele, seriam monólogos e não diálogos narrativos. Demorava-se muito e misturava a temática. Ainda escreveu:

A falta de gosto de Dostoievski, seu tratamento monótono de pessoas que sofriam de complexos pré-freudianos, o hábito de espojar infortúnios da dignidade humana — tudo isso é difícil de admirar.

Aí está o núcleo do pensamento de Nabokov, o autor de Lolita.

Para mim, velho leitor e admirador do grande russo, isso é um elogio, até porque ele não entrega o personagem pronto, mas vai em busca de sua complexidade. Dostoievski não quer uma marionete, mas uma pessoa que se atira na aventura de viver. Quer a alma e não a carcaça. Desta, os médicos tomam conta. Uma frase deste magnifico autor é um ensaio sobre a condição humana. Freud viu isso muito bem e a partir dele criou muitas teorias da psicanálise. A partir dele e dos gregos.

Escrito numa amora
E Eco? Onde ficou Umberto Eco? Depois de escrever sobre a criação literária, que ele próprio ironiza, Eco criou uma Teoria da Respiração, nunca ironizada. Diz ele em Sobre a literatura, repetindo o que os outros disseram, que “o aspirante a escritor deve escrever, escrever. Escrever em qualquer lugar, num envelope, num papel de embrulho ou numa casca de amora”.

Quanto à teoria da respiração, diz ele:

Entrar num romance é como fazer uma excursão à montanha: É preciso aprender a respirar, regular o passo, do contrário desiste-se logo. Acontece o mesmo em poesia. Pensem um pouco como são insuportáveis os poetas declamados por atores que, para interpretar, não respeitam a medida do verso, fazendo enjambements recitativos como se falassem em brisa, atentos aos conteúdos e não ao ritmo.

Mais adiante destaca:

Em narrativa a respiração não é confiada às frases, mas a micro proposições mais amplas a escansões de eventos.
Há romances que respiram e outros respiram como baleias, ou elefantes.

Talvez seja também uma ironia. Mas há vantagem em levar o italiano a sério.

Surgiu uma história na Itália: o editor de O nome da rosa, escandalizado com as cem primeiras páginas do romance, quando os personagens sobem uma montanha, sugeriu a retirada das páginas, recebeu esta resposta: “Se os leitores não podem subir as cem páginas comigo, é melhor que não comecem”.

Eis Umberto Eco e eis Nabokov nos revelando que a literatura é uma montanha íngreme a ser escalada com sangue nas mãos.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho