Após Flaubert, o narrador não foi mais aquele

"A educação sentimental" traz uma variedade de vozes narrativas, sem que nenhuma delas tenha autonomia
Gustave Flaubert, autor de “A educação sentimental”
01/02/2012

Quando se fala em Flaubert, é certo que Madame Bovary será o livro imediatamente citado. Quase nunca a referência é A educação sentimental, um romance extremamente bem escrito, com duas redações distintas, e que conta a história de dois amigos, tendo por fundo os episódios da vida artístico-cultural da França, com destaque para os fatos revolucionários de 1848, em Paris.

Ao lermos esse clássico do mestre francês, a primeira impressão é de que a história completa pertence, sem dúvida, ao narrador onisciente. Mas não é bem assim. Ledo engano. Os narradores de A educação sentimental — não há um só narrador, como era e é costume na prosa de ficção — são os seus dois personagens principais. O que só é percebido pelo leitor já no final da primeira parte do romance. Uma habilidosa estratégia literária de Flaubert.

Quando o romance começa, num misto de cenário humano e cenário natural, o narrador onisciente parece oferecer uma visão tradicional da história, conduzida, porém, pela falsa terceira pessoa de Frédéric e não de um narrador onisciente. Basta verificar, mais tarde, que a voz é dele nessa longa conversa, diálogo com o amigo Charles Deslauriers. Uma rápida leitura do primeiro parágrafo mostra a riqueza das vozes:

No dia 15 de setembro de 1840, o Ville-de-Montereau, pronto a largar, soltava os seus grossos rolos de fumo junto do cais Saint-Bernard. Gente chegava esbaforida; barricas, cordas, cestos de roupa dificultavam a circulação; os marujos não respondiam a ninguém; as pessoas atropelavam-se; entre dois cilindros eram içadas encomendas, e a vozeria perdia-se no silvo do vapor das máquinas que, escapando por entre as chapas de zinco, envolvia a cena numa nuvem esbranquiçada, enquanto a sineta, à proa, tocava sem parar.

Então, o texto começa com duas vozes, porque a impressão inicial é a de que o narrador onisciente está revelando o cenário duplamente humano e natural. O primeiro, com a participação de muita gente, marinheiros e tripulantes, mas sem os personagens centrais; o cenário natural, constituído por barricas, cordas, cestos de roupa, chapas de zinco, o próprio navio, mas sabe-se depois que é um cenário revelado a Deslauriers. Portanto, é uma primeira pessoa. Mas como está escrito na terceira, é a falsa terceira; que se constitui numa primeira pessoa com técnica de terceira.

Percebam que o narrador fala sempre à distância, mas, na verdade, ele está ali e por isso mesmo conta.

Durante a história, o narrador onisciente vai se descolando da falsa primeira pessoa de Frédéric e ocupando a falsa primeira pessoa com Charles Deslauriers, como acontece, por exemplo, no parágrafo seguinte:

O Capitão, que explorava agora um bilhar em Villenauxe, deitara fogo pelos olhos quando o filho lhe exigira a prestação de contas da tutela, e cortara-lhe até os subsídios. Mas, como pretendia concorrer mais tarde a uma cadeira de professor na Escola, e não tinha dinheiro, Deslauriers aceitara, em Troyes, um lugar de escrevente de um procurador. À força de privações, economizaria quatro mil francos; e, mesmo que não viesse a receber a herança materna, sempre teria meios para trabalhar livremente, durante três anos, enquanto não obtivesse uma posição. Tinham assim que por de parte o velho projeto de viverem juntos na capital, pelo menos nos tempos mais próximos.

Frédéric baixou a cabeça. Era o primeiro dos seus sonhos que caía por terra.

— Consola-te — disse o filho do capitão —, a vida é longa e nós somos jovens. Hei de ter contigo! Não penses mais nisso!

1) O narrador onisciente, nesse caso, não é tão onisciente assim: ele segue o ponto de vista da personagem e harmoniza o texto. Vejam bem, harmoniza o texto segundo a personagem; e não conduz o texto sozinho.

2) Aqui as três vozes se unem através da terceira pessoa. Aquele — Flaubert — que criou o discurso indireto livre, agora apresenta as muitas vozes narrativas superpostas, sem que nenhuma delas tenha autonomia. O que lembra o “nós” na abertura de Madame Bovary, tão discutido pelos teóricos.

O que importa, sobretudo, é discutir o nível de criação em Flaubert, que deu início a toda a revolução da prosa de ficção já em 1850. Por isso declarou que queria escrever um romance sobre nada. Ou seja, um romance sem conteúdo, apenas com os elementos internos da narrativa. Nada significava, nada que fosse estranho à narrativa. Nem filosofia, nem sociologia, nem história, embora fosse tão rigoroso que a história nos seus romances vinha com informações seguras e científicas, sendo A educação sentimental um deles.

Ao tirar a autonomia do narrador onisciente, Flaubert reforçou o poder do personagem, concedendo-lhe voz e olhar narrativos. Ou seja, o texto chega ao leitor através do que o personagem vê e como vê, define o caráter e o comportamento, o que, evidentemente, enriquece a narração. O narrador tradicional se ausenta e deixa que os personagens narrem. O narrador tradicional onisciente tem, então, uma nova tarefa: a de harmonizar e organizar o texto, o que os cineastas chamam de montagem. É nesse sentido, por exemplo, que a montagem se apresenta superior à direção.

É assim que o segundo capítulo de A educação sentimental tem o comando de Deslauriers, cujo olhar chega ao leitor dentro daquele conceito dos múltiplos narradores: Deslauriers, narrador onisciente e falsa terceira pessoa. Veremos, neste sentido, como é montado o princípio do segundo capítulo da primeira parte de A educação sentimental:

O pai de Charles Deslauriers, antigo capitão do exército, que pedira demissão em 1818, voltara a Nogent para se casar, e comprara, com o dote, um cartório de meirinho, que mal dava para viver. Amargurado com antigas injustiças, sofrendo ainda os efeitos de velhos ferimentos e sempre saudoso do Imperador, vingava-se nos seus próximos da cólera que o corroia. Poucas crianças tinham sido mais espancadas do que seu filho. O pequeno não cedia, apesar das surras. A mãe, quando tentava de permeio, apanhava também. Finalmente, o pai o pôs no seu cartório e mantinha-o o dia inteiro sobre a escrivaninha, copiando processos, o que lhe deixou um ombro visivelmente mais forte do que o outro.

Quando se analisa a narrativa de Deslauriers comparando com a de Frédéric diante de outros personagens, compreende-se a mudança de caracteres, o que, naturalmente, enriquece a narrativa, sobretudo para quem acredita que lê um narrador onisciente:

(…) viu um senhor que dirigia galanteios a uma camponesa, brincando com a cruz de ouro que ela trazia ao peito. Era um sujeito forte, de uns quarenta anos, cabelos crespos. O tronco robusto enchia o jaquetão de veludo preto, na camisa de cambraia brilhavam duas esmeraldas, e as calças largas caíam sobre estranhas botas vermelhas, em couro da Rússia, e alçadas por desenhos azuis.

Esses dois perfis físico-psicológicos determinam o caráter de Frédéric e de Charles sob a organização ou harmonização do narrador onisciente. No primeiro caso, Charles vê o pai com um ranço de raiva e vingança; Frédéric, ao contrário, mostra uma visão meio que romântica do folgazão Sr. Arnoux. De forma que aí já é possível definir o caráter romântico de um e o caráter pragmático do outro.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho