Na coluna anterior começamos a mostrar como uma narrativa é construída cena após cena a princípio de acordo com o narrador e, em seguida, conforme a pulsação do personagem, no caso Inácio Ramos, do conto O machete, de Machado de Assis, lento, intimista, reflexivo. Em seguida falamos de Carlota, mais rápida, mais vibrante. É preciso ter o conto por perto para leitura e releitura. Um escritor não lê como o leitor comum: examina, questiona, pergunta.
Estamos aqui criando as bases da construção narrativa. É um estudo. Nada mais. Serve para criar a absoluta consciência narrativa. Não é um modelo, nem pode ser. Lembre-se dos artistas plásticos que até imitam os mestres. Tratamos de um exercício. Exercício para o salto. Para que você conheça a intimidade da história. Agora tratamos dos personagens principais — Inácio e Carlota; e, em seguida, do personagem ilustrativo — o pai de Inácio.
O narrador onisciente, então, recorre à técnica do personagem ilustrativo, no caso, o pai, que dá esse andamento lento, ou devagar, à história, mesmo que não pareça no primeiro momento. Verifique com atenção: a frase é pequena, breve, e o ponto cria uma distância proposital entre ela e a segunda. Há um corte, uma distância, como se, numa composição musical, a última nota se distendesse, deixando apenas o som pairar na narrativa. Assim:
Inácio Ramos contava // apenas dez anos // quando manifestou // decidida vocação musical //
Nesse andamento, e com uma quebra narrativa, surge a segunda frase:
Seu pai, músico da imperial capela, ensinou-lhe os primeiros rudimentos de sua arte, de envolta com os da gramática, de que pouco sabia.
Entre a primeira e a segunda frases parece existir uma narrativa linear. Não é verdade. O narrador, com profunda leveza, afastou-se de Inácio, para introduzir o pai. Mais uma vez: quebra narrativa, proposital. Caso ele escrevesse: “(Ele) Estudou com o pai, músico da imperial capela”, haveria, aí, um texto linear. A retirada da expressão “ele estudou com o pai” cava um abismo, interrompe a linearidade, e faz surgir um personagem, que será apenas ilustrativo.
A terceira frase, então, ainda mais lenta, provoca um movimento de absoluta distensão narrativa, compondo a pulsação do personagem:
Era um pobre artista cujo único mérito estava na voz de tenor e na arte com que executava a música sacra.
Observaram agora uma novidade? Machado de Assis retirou as vírgulas tradicionais, de forma que a frase manteve a lentidão rítmica e visual, e a limpeza visual fez a narrativa ganhar maior distensão, como uma espécie de eco que vai se movimentando no interior da frase.
Em geral, ela seria escrita assim:
Era um pobre artista, cujo único mérito estava na voz de tenor, e na arte com que executava a música sacra.
Ocorre que o escritor é extremamente hábil e não poderia, com o uso da vírgula, chamar a atenção para a ironia da frase: como pode ser um único mérito usar bem a voz e a arte? É pouco um artista ter o mérito de dominar a sua arte? Ou ele não é tão assim, porque era um “pobre artista”? Pobre artista em que sentido: por que não tinha recursos artísticos ou por que não tinha recursos financeiros? Não se esqueçam que a ironia e a ambigüidade são duas das melhores qualidades de Machado de Assis. Assim como a simulação. Então se conclui que ele retira as vírgulas, de um lado, para possibilitar a distensão do som na frase e, de outra maneira, para evitar que o leitor perceba o jogo de ironia e ambigüidade já no primeiro instante.
Na terceira frase:
Inácio, conseguintemente, aprendeu melhor a música do que a língua, e aos quinze anos sabia mais dos bemóis do que dos grandes mestres.
A narrativa diminui a intensidade, sobretudo com o uso do advérbio: “conseguintemente”. Parece que houve rapidez, mas a lenta reflexão nos coloca diante de nova ambigüidade: como podia aprender melhor a música, “conseguintemente”, se a única qualidade do pai eram a voz e arte? Vejam bem: a única vantagem de um pobre músico. Nesse ir e vir de informações do personagem ilustrativo percebe-se como o andamento lento sofreu nova retração, e ficou mais lento. A narrativa é montada e remontada, sem que ganhe velocidade e leveza.
Na próxima aula continuaremos a refletir sobre a criação de Machado de Assis, através da estrutura das cenas.
Quarta frase:
Ainda assim sabia quanto bastava para ler a história da música e dos grandes mestres.
Frase limpa, que permite avançar no andamento, desaguando numa informação elíptica:
A leitura seduziu-o ainda mais; atirou-se o rapaz com todas as forças da alma à arte do seu coração, e ficou dentro de pouco tempo um rabequista de primeira categoria.
Aí, sim, a frase começa a ganhar movimento, sobretudo por causa do verbo altissonante “seduzir”, até o ponto e vírgula, tornando-me mais veloz nos movimentos finais, o que faz retornar ao mesmo movimento do princípio. Mas observe que o verbo altissonante relaciona-se com a leitura, e não com o pai: “A leitura seduziu-o ainda mais”. Por último, a informação sobre a rabeca aparece rapidamente, sem nenhuma informação ou explicação para o leitor. Num autor convencional haveria, pelo menos, uma frase para introduzir a rabeca. Esta velocidade prepara o andamento mais rápido do próximo parágrafo.
Tudo isso para demonstrar de que maneira técnica o narrador de O machete procura encontrar os movimentos desejados para colocar o leitor no ritmo do texto. De forma que, agora, podemos fazer um exercício de cena interna com tônica psicológica. Sem o personagem ilustrativo. O que interessa é o exercício de cena externa.
Vamos fazer, em conjunto, uma cena interna, passo a passo. Neste caso, a cena interna com tônica psicológica pede um andamento lento, mesmo quando a narrativa avança. Mas escreva, neste momento, considerando suas idéias. Depois reescreva e reescreva. E escreva e reescreva. Estamos fazendo um exercício. Com cautela.
Exercício de cena interna
a) Argumento
Tome nota: Numa agência bancária, cinco pessoas trabalham numa sala. Quatro homens e uma mulher. A mulher é cortejada pelo chefe, mas decide não aceitar uma relação. Daí em diante o chefe passa a colocar em dúvidas suas qualidades funcionais. Ou seja: coloca defeito em tudo o que ela faz.
b) Início
Comece o exercício por uma cena interna com tônica psicológica, mostrando a formação da moça. Competente na escola, nas relações sociais, na família. Então faça o seguinte com a primeira frase do exercício:
Enquanto caminhava para a escola, todos os dias, Adélia projetava o futuro.
Encontre aí, a sua própria frase:
Enquanto caminhava para a escola, todos os dias, Adélia…
Ou assim:
Enquanto caminhava para a escola,……………………, Adélia projetava…………………..
NOTA: A coluna de Raimundo Carrero é publicada originalmente no jornal Pernambuco, de Recife. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.