Ambiguidade como técnica e sentimento

“Pedro Páramo”, do mexicano Juan Rulfo, é um marco ao colocar a literatura latino-americana no mapa mundial
Juan Rulfo, autor de “Pedro Páramo”
01/02/2023

A ambiguidade é, com certeza, o recurso técnico mais sofisticado do romance Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, fundador do realismo mágico, precioso movimento latino-americano que solidificou a literatura na região e a colocou no mesmo nível da produção europeia, segundo a avaliação da crítica internacional. Gerald Martin, biógrafo de Gabriel García Márquez, afirma, por exemplo, que Cem anos de Solidão colocou a literatura latino-americana definitivamente no mapa da literatura universal.

Mesmo assim é preciso destacar que tudo começa com Pedro Páramo. Um romance em que os mortos conversam, na narrativa de Juan Preciado e em cuja primeira parte se lê a história de um homem truculento, voraz e estúpido, extravagante e excêntrico, retrato sem retoques de um ditador latino e suas bestialidades.

Excentricidade e extravagância que se revelam mais tarde em nome de Suzana San Juan, a grande paixão de Pedro — e aí o romance perde a sua intensa carga política para se transformar num romance de amor — daí a sua ambiguidade, um homem que ama desesperadamente, violentamente, é aquele mesmo criminoso, bandido, fazendeiro arbitrário, cujas relações sociais são dramaticamente cruéis.

Sobretudo depois que o leitor percebe que Suzana San Juan é uma mulher tísica, que vive nua numa vala, submetida a todo tipo de dor e sofrimento. Donde se conclui que, inevitavelmente, é a metáfora de uma região explorada, torturada, doente, que se chama América Latina, capaz de provocar este amor, que produz um Guevara, concluindo-se, todavia, que Pedro jamais seria um líder guerrilheiro, e que Suzana não poderia encarnar o tipo da mulher ideal consumista. Tudo isso em nome da técnica, da mesma técnica que Juan Rulfo é criador e renovador.

Estas relações de poder e de amor resultam na criação de uma obra absolutamente gigantesca que não apenas coloca a literatura latina no mapa universal da criação, mas a supera em muitos sentidos. O que se observa no perfeito discurso indireto livre logo nas primeiras frases:

Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo. Minha mãe me disse.

Como se percebe, duas vozes. Tudo sob a coordenação do narrador único Juan Preciado. Essa sofisticação nos permite chegar a Cem anos de solidão e a outras obras que transformaram o romance do Continente.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho