A técnica do romance na estética popular

O autor defende um tema e o transforma em narrativa, que perpassa o texto do começo ao fim em forma de enredo como o leito de um rio
Jorge Amado, autor de “Jubiabá” e “Capitães da areia”
02/11/2020

Para estabelecer uma comunicação direta e plena com o leitor, Jorge Amado escolheu a técnica do “romance-rio”, que faz a narrativa correr à larga, sem interrupções, pontilhada de personagens, cenas, cenários e diálogos de maneira que provoca prazer, gozo permanente, residindo aí um dos seus segredos de romancista — sempre acompanhado por uma legião de leitores fiéis.

Mas o que é que vem a ser mesmo “romance-rio”? Basta observar a narrativa clássica. O autor defende um tema e o transforma em narrativa, que perpassa o texto do começo ao fim em forma de enredo como o leito de um rio. Enquanto escorre em linha reta, o enredo vai recolhendo motivos ou personagens, que fortalecem o texto central. Enquanto corre para o mar, o rio reúne estes afluentes formados por histórias dos personagens que dão vivacidade e enriquecimento ao enredo.

De acordo com decisão do autor que, insisto, não é o narrador, os personagens se cruzam entre si até formar o grande texto com suspense, retornos, voltas, avanços e intrigas. Neste caso, o escritor recorre, em geral, ao narrador onisciente que flutua por todo o romance, mesmo quando enfrenta caracteres opostos e contraditórios. O narrador, aí, não encontra dificuldades e impedimentos, até porque atua como uma espécie de DEUS, com amplas condições para agir, entre outras coisas, participando da intimidade do personagem, mesmo quando pareça inadequado.

Afeto e habilidade
Em Capitães da areia, Jorge Amado lança mão do afeto e da habilidade para conduzir o narrador e o leitor. Depois de uma apresentação difícil, o romance é entregue a um narrador onisciente afetuoso, que segura na mão do personagem João Grande que, por sua vez, segura na mão do leitor e leva-o a conhecer a intimidade do Trapiche e seus meninos-habitantes.

A voz do narrador se confunde com o olhar e o gestual de João Grande, que nos apresenta esses meninos, o seu grupo de garotos abandonados, jogados no mundo sem qualquer proteção. O narrador nos mostra assim o negro João Grande, que se recolhe, como ele próprio diz.

E alto, o mais alto do grupo e o mais forte também, negro de carapinha baixa e músculos retesados, embora tenha apenas treze anos, dos quais quatro passados na mais absoluta liberdade, correndo as ruas da Bahia com os capitães de areia. Vai curvado pelo vento como a vela de um barco.

A partir daí João começa apresentar os outros meninos:

João Grande vem vindo para o Trapiche. Ele foi à Porta do Mar beber um trago de cachaça com o Querido de Deus, que chegou hoje dos mares do sul, de uma pescaria… João Grande para onde está o Professor, se bem durma sempre na porta do Trapiche, como um cão de fila, o punhal próximo da mão… João José era único que lia corretamente… Sem-Pernas falava alto, ria muito… Coxo, um defeito físico… Sem-Pernas metia a ridículo o Gato… Pirulito era magro e muito alto… físico valera-lhe o apelido…

O carrossel da esperança
Um pouco adiante, neste romance revolucionário, e sem perder a ternura, Jorge Amado concede esperança aos meninos abandonados na imagem, na metáfora de um carrossel instalado perto do Trapiche. O carrossel é um presente de um anjo. Este anjo chama-se Nhozinho França, que confia plenamente nas crianças e dá a elas a possibilidade de viver dignamente, mesmo numa vida tão difícil… Assim fala o narrador:

Então eles foram como crianças, gozaram daquela felicidade que nuca haviam gozado naquela meninice de filhos de camponeses: montar e rodar no cavalo de madeira de um carrossel, onde havia música de uma pianola e onde as luzes eram de todas cores: azuis, verdes, amarelas, roxas e vermelhas como o sangue que sai de corpos assassinados.

Isso mesmo contou Nhozinho a Volta Seca — que ficou excitadíssimo — e o Sem-Pernas naquela noite em que os encontrou na Porta do Mar e os convidou que ajudassem no serviço do carrossel durante os dias em que estivesse armado na Bahia, em Itapagipe.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho