Neste momento histórico ainda tão doloroso para o Brasil, quando o negacionismo insiste em atormentar, penso reiteradas vezes em Flaubert, o gênio que mudou radicalmente a forma de narrar e utilizou as suas técnicas para debater as preocupações com as minorias, sobretudo as empregadas domésticas e as mulheres, a quem eram negados todos os direitos, até mesmo os dos sonhos, às vezes os sonhos excessivos, é verdade. Mas a natureza do sonho é ser excessivo e, por isso, é sonho, com muito de delírio, sem dúvida.
A questão do sonho delirante é que quase sempre termina em pesadelo. E o pesadelo tem muito de castigo e dor. É caso de Emma Bovary, levada ao suicídio pelo extremo do sonho, confrontando todas as regras sociais, ou melhor, todo o rígido comportamento social, que ela sabia intransigente e punitivo. Aliás, toda regra social, com sua enorme carga de limites, resulta em castigo definitivo e cruel, como é o caso do adultério.
O sexo na personagem não é só prazer e festa, é, sobretudo, o caminho para a realização do sonho, para o tormento do encantamento ou da encantação, o motivo que a levará ao desejado… Nela, o prazer não é apenas erótico. Tem uma carga muito forte de busca da materialidade, não somente de gozo, mas da busca de um ideal: o da fortuna e, com ela, o da independência.
Numa sociedade extremamente conservadora e patriarcal, Emma sabia que sua independência somente seria alcançada com a fortuna material. Enganou-se, porém, na escolha dos seus elementos: León e Rodolfo; o primeiro um mero empregado de cartório, o segundo, um agricultor desafortunado. Foi em busca de fortuna e não de gozo erótico. E eles não puderam ajudá-la.
Ainda que não falte erotismo ao consagradíssimo romance.
Basta ver as duas cenas eróticas com León: a primeira quando ele a descobre nua e sedutora na estalagem à luz da lareira, cujas chamas entrega aos olhos ainda inocentes e ávidos de León; a segunda, naquela cena muda na charrete em Paris, já agora envolvidos na intimidade sexual que se resolve nos papéis rasgados metafóricos de quem compreende, afinal, que o sonho resultaria em sonhos ao vento. Com Rodolfo, a negativa do empréstimo a levou ao suicídio. E à compreensão de que o sonho a levaria definitivamente ao fracasso, representado pela figura do cego e o seu cajado barulhento.
Em Um coração simples, por exemplo, a empregada Felicidade escravizada é motivo de inveja dos patrões, e aí nasce a empregada doméstica explorada sem direitos… só trabalho, trabalho, trabalho…