Todas as coisas se amam, e as artes também. Aliás, todas as coisas se amam é o título de um ótimo livro do padre Ernesto Cardenal, um dos militantes que promoveram a revolução na Nicarágua, no tempo em que padres faziam revolução. E com amor e com a cruz. Mas não é de revolução popular que vou escrever. Me desculpem — de revolução sim, e da mais radical de todas as revoluções: aquela que envolve os fenômenos literários.
No amor das artes, eles se acarinham e se devoram, se destroem e se revelam. Alimentam-se das próprias dores e das próprias agonias. Tornam-se inquietas e participam da construção do Belo. Isso mesmo. E, sendo assim, não é esquisito que o romance moderno — aquele que nasce com Dom Quixote e que é chamado de romance burguês — tenha se alimentado, por exemplo, das seivas do teatro — ou da epopéia —, para definir mais tarde os seus caminhos.
Vieram, então, nas páginas da ficção em prosa, os diálogos tradicionais, marcados por dois pontos e travessões, além das marcações — que também é coisa do teatro, e do teatro mais antigo, que hoje não se usam mais. Os autores e narradores preferiram aboli-los, em muitos casos. Basta agora lembrar com rapidez, sem muita reflexão. Como é o diálogo tradicional? Assim:
— Você vai ao cinema? — Perguntou ele.
Ela respondeu:
— Se você me acompanhar.
Estão aí os elementos do diálogo tradicional: depois de “assim”, dois pontos, que abrem a possibilidade do diálogo, através da voz externa do personagem masculino, com um travessão, o breve sinal que aparece antes de “você”. Em seguida surge a voz do personagem: “— Você vai ao cinema?”. E agora, depois de um novo travessão, a marcação, ou seja, a identificação de quem fala: “Perguntou ele”. Vendo bem, além do diálogo, o romance herdou aí a marcação. Só uma lembrança: a marcação no teatro, que hoje nem existe mais, era feita pelo autor para ser realizada pelo ator, de acordo com o diretor. E era escrita da seguinte maneira: Ator dirige-se à esquerda e pergunta: “Você vai ao cinema?”; “Se você me acompanhar”, responde a atriz, ao lado do ator, rindo com leveza e malícia. Hoje, não é mais escrito assim, porque a responsabilidade da cena é transferida para o diretor.
Na tradição norte-americana, o travessão é substituído pelas aspas, como ocorre, por exemplo, no romance de John Updike, considerado um dos três grandes do século 20, nos Estados Unidos, ao lado de Norman Mailer e Philip Roth, também consagrado pela crítica brasileira. Updike procurou ser o intérprete da vida norte-americana com uma obra marcada pela crítica social e pela criação de personagens representativos dessa área. É assim que ele escreve os diálogos:
Coelho pergunta: “Cadê o menino?”
“Na casa da minha mãe? O carro está coma sua mãe e o menino com a minha. Meu Deus. Você é um fracasso.”
Ela se levanta, a sua gravidez o irrita, aquela voluminosidade teimosa.
Além da marcação — “Coelho pergunta”, “Ela se levanta” — é acrescentado um comentário: “a sua gravidez o irrita, aquela voluminosidade teimosa”. Duas técnicas diferentes, embora com um pequeno avanço. Na primeira: fala mais marcação; na segunda, fala mais a marcação e mais o comentário. E com as novas conquistas da ficção, veremos que algumas soluções são encontradas, distanciando-se do teatro, rebelando-se, avançando. Amando. Amor rebelde, mas amor. Amando-se e devorando-se.
Surge o discurso indireto livre, e aí o romance começa a ganhar autonomia, como queria Gustav Flaubert, o reinventor do romance moderno. Que alguns chamam de estilo indireto livre e que prefiro chamar de diálogo indireto livre. Para Mario Vargas Llosa, essa é maior contribuição de Flaubert ao romance moderno.
O diálogo indireto livre consiste em aproximar tanto o narrador do personagem que o leitor não percebe, em geral, a diferença de vozes. Aqui se evitam, portanto, o travessão, as aspas e, em certos casos, até a marcação. As vozes do narrador e do personagem se confundem, com a retirada dos sinais. Numa única frase, as vozes entrecruzam-se, e dá ao texto uma leveza que deixa o leitor mais à vontade. Vamos tomar o exemplo de Pedro Páramo, romance de Juan Rulfo, que, basicamente, criou as bases do romance latino-americano. Preste atenção:
Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo.
Minha mãe me disse.
Percebeu? Aproxime mais os olhos e a curiosidade, se possível use uma pinça para as frases que vamos isolar. Aparentemente, as frases parecem convencionais, comuns Nada de estranho. Mas com a aproximação dos olhos percebe-se a repetição do verbo dizer, no plural e no singular. Ou não é? Como um escritor de alta qualidade faria isso? Onde andaria a harmonia do texto? Para responder, pegamos logo a pinça e isolamos as frases. “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo.” É certo, portanto, que as pessoas ou desconhecidos “disseram” que ali vivia o pai do personagem, Juan Preciado. Ótimo. É isso mesmo. Na outra frase está dito que foi a mãe quem me “disse”. Afinal, quem disse que ali vivia Pedro Páramo, as pessoas, os desconhecidos ou a mãe? O narrador não sabe de nada? Sabe, e sabe muito. Sabe mais do que nós.
Na primeira frase foram essas pessoas que “disseram” que ali vivia o pai, mas foi somente a mãe, com todo o ódio que guardava no coração que “disse” um “tal de Pedro Páramo”, com rancor. São duas vozes para uma só narrativa. Ou seja, um diálogo indireto livre. De forma indireta, como se tem ressaltado, sem qualquer sinal, aspas ou travessão, e com apenas uma marcação, revelada no verbo “dizer”, o autor possibilita, de maneira subjetiva, que narrador e personagem conversem, ou se manifestem. Numa linha narrativa direta, escrita numa primeira versão, a frase ficaria dessa maneira:
Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, que minha mãe chamava de um tal de Pedro Páramo, com toda a raiva do coração.
Tem coisa mais óbvia e mal-feita? É aí que entra o artesanato, a qualidade essencial do escritor. José Saramago, o português Prêmio Nobel de Literatura, procura um caminho diferente, usa uma variante da técnica, fazendo com que a primeira letra da fala do personagem apareça em maiúsculo, o que facilita a compreensão do texto:
Sete-Sóis soergueu-se na enxerga, e também inquieto, Estás a mangar comigo, ninguém pode olhar por dentro das pessoas, Eu posso, Não acredito…
É possível observar, com clareza, que as palavras “estás”, “eu” e “não” têm a primeira letra no maiúsculo para assinalar a mudança de vozes. E aí sem a necessidade da marcação, ou seja, dos clássicos “disse”, “perguntou”, “respondeu”, “falou”, “acrescentou”, o que, quase sempre, deve ser mesmo evitado, porque o leitor está entendendo muito bem. Dessa forma, a literatura de ficção ganha uma espécie de tecido único, sem interrupções desnecessárias para os olhos do leitor. Em certo sentido, fica mais agradável e atinge — no conto, na novela e no romance — um alto grau de sutileza que pode surpreender o leitor a cada momento, impondo seu encanto e sua sutileza, com a verdadeira qualidade de um sedutor, que é, afinal de contas, o objetivo de toda a arte.
Mas há, ainda, e sobretudo, aquele diálogo indireto livre clássico, que se caracteriza pela mudança do tempo verbal, e que se estuda até mesmo na gramática. Veremos o exemplo de Sérgio Rodrigues, em Elza, a garota:
Terminou de enumerar seus feitos esquivos e explicou que agora tudo estava mudado, era independente, não admitia mais patrão….
Com atenção, percebemos claramente as duas vozes que resultam no diálogo indireto livre. Voz do narrador: “Terminou de enumerar seus feitos e explicou que…” Voz indireta do personagem: “Agora tudo estava mudado, era independente, não admitia mais patrão”. O que aconteceu aí foi a mudança do tempo verbal. Evita-se o presente para usar o pretérito imperfeito. Ou seja, a frase que seria “Agora tudo está mudado, sou independente, não admito padrão”. E pronto. O personagem dialoga com o narrador e o leitor nem sempre percebe. Por quê? Por causa da mudança do tempo verbal. Que até parece intuitiva. Não é. É técnica.
É também por isso que o amor entre criaturas — mesmo que sejam elementos da arte — resulta em fogo devorador. Pouco a pouco, o teatro, que cedeu material para a evolução da arte romanesca, foi perdendo a influência e a ficção se tornava autônoma, a ponto de iluminar sozinha o seu palco. Claro, um escritor pode e deve construir a sua obra como queira. Não estamos falando de regras, mas de técnicas. O romano Horácio pretendeu estabelecer rígidas regras poéticas e não foi feliz. Ninguém manda na mão do criador. Ele continua — e continuará — tendo a absoluta liberdade para estabelecer o próprio caminho, conquistando novas posições, determinado e seguro. O artista estará sempre alerta para defender a sua liberdade e o seu destino de criador em absoluto, protegendo o direito de inventar, pessoal e intransferível, absorvendo os caminhos de outras artes, mas seguro de sua individualidade. Daí por que soa a sua voz de vencedor: “A obra é minha ninguém tasca eu vi primeiro”.