“A cidade fede horrivelmente devido à putrefação dos corpos dependurados e contamos com a morte para que a vida nos traga suas benesses: mas não é uma beleza o modo como nossas bolsas estão cheias e nossa mesa farta?”
Estas palavras ásperas, fortes e inquietantes encerram o primeiro conto de O metal de que somos feitos, de Walther Moreira Santos, um dos vencedores do Prêmio Pernambuco de Literatura, na categoria Contos, e que confirma a força de um dos maiores escritores do Estado, que vive, em exílio voluntário e extremamente silencioso, em Vitória de Santo Antão, de onde sai somente para receber os inúmeros prêmios que marcam sua carreira.
Em princípio pareceu-me um romance, apesar da diversidade das histórias e da força de cada uma de suas palavras. Confundi-me por causa de seu estilo e do desenvolvimento dos textos. Logo percebi o meu equívoco e fui examinar um a um os contos sempre densos e fortes. O escritor recorre também ao narrador plural, sempre muito difícil e desafiante: “De primeiro, nossos inimigos depuseram nosso rei e em seu lugar coroaram um ditador simpático a eles”.
Observe-se, por exemplo, que os personagens de Walther estão sempre sufocados e, em torno deles, há alguma situação inquietante. E não é apenas neste livro, mas em todos aqueles já publicados e premiados. Há em tudo uma espécie de aflição, de inquietação, de sombra que acompanha o cortejo dos personagens e das histórias. No entanto, mesmo quando recorre a tragédias e a dramas, a odores e a suores, o escritor não perde o traço elegante e sedutor dos seus textos. Sim, a aflição parece ser o traço mais forte de sua narrativa. A aflição e uma espécie de medo subterrâneo que acompanha o reino de suas palavras. Medo, porém, que cede espaço às frases, às orações, aos parágrafos, sempre escritos com muita coragem, com muita firmeza, que é o sinal de sua maturidade, da sua força narrativa.
Raramente se encontra em Pernambuco, ou em outro qualquer estado do Brasil, um escritor com tanta obsessão e certeza. Basta uma viagem pelos contos deste livro invulgar, a partir mesmo da epígrafe irônica/dramática de Bernard Show: “A vida é uma pedra de amolar: desgasta-nos ou Afia-nos, conforme o metal de que somos feitos”.
Não tem sentido, portanto, o silêncio que se faz em torno de um criador de grandes personagens e de situações notáveis, composto por breves enredos sempre cativantes e, não raro, dolorosos. Vale a pena ler e estudar Walther Moreira dos Santos.
O trabalho de Walther abre espaço para uma brevíssima reflexão sobre a arte do conto. O que é o conto? Há muitas definições embora nem sempre precisas como é próprio da definição. Cortázar afirmava que o conto se assemelha a uma luta de boxe, cujo desfecho se dá no primeiro round, por nocaute. Sem dúvida, uma definição muito forte, até mesmo na imagem. Mas nem sempre é assim. A maioria dos contos de Jorge Luis Borges ou de Machado de Assis nem sempre são assim. Pedem reflexão e leveza. O conto sequencial, a que Cortázar se refere, é escrito segundo a técnica de cena sobre cena, uma cadeia de fatos em busca de um desfecho. O próprio Cortázar não era rigorosamente assim. Tudo isso nasce daquela ideia de que o escritor deve usar o menor espaço possível para falar da história e dos personagens. Não é bem assim. Usando-se metáforas precisas e reflexões decisivas, um contista pode usar o espaço que lhe pareça mais preciso. Afinal, o campo é amplo para muitos debates e análises. Não existe verdade absoluta na arte — e literatura é sobretudo arte.
Além disso, o conto tem amplas motivações. Pode ser escrito em dois ou três parágrafos, em uma página, em muitas páginas, em diversas páginas. Pode ser apenas um concentrado de poucas palavras, o nocaute a que Cortázar se refere, ou ter 20 ou 30 páginas. Short Story, Short Short, Long Story, como queiram. Em Walther tudo isso é possível. Até porque nele a reflexão se sobrepõe aos fatos. O livro vencedor do prêmio é muito amplo em sugestões, muito variado embora compacto, sem jamais perder a força. Pode-se lê-lo a partir de qualquer um dos contos, e partir em qualquer direção — do começo para o fim, do fim para o começo, do meio para o fim, do meio para o começo — e ele não perderá a força e a beleza com certeza. Um trabalho exemplar, de quem não apenas conhece, mas domina o seu ofício.
NOTA
O texto A obra densa, forte e bela de Walther foi publicado originalmente no suplemento Pernambuco, de Recife (PE).