A narrativa em segunda pessoa

Um dos exemplos mais destacados é o romance — ou novela? — "Ana-Não", do espanhol Agustín Gomez-Arcos
O espanhol Agustín Gomez-Arcos, autor de “Ana-Não”
01/11/2023

Estranho, não é? Sim, a narrativa em segunda pessoa é estranha, muito estranha, estranhíssima, reconheço. Mas existe e — quando aplicada na prosa de ficção, romance, novela, conto — causa uma inquietação vertiginosa e agita o leitor, embora no plural apareça muito na obra de grandes escritores do começo do século 20, sobretudo nas advertências do narrador, não rara vezes confundido com o autor.

Um dos exemplos mais destacados é do romance — ou novela? — Ana-Não, do espanhol Agustín Gomez-Arcos. Para alcançar os melhores resultados numa linguagem poética e leve sem perde o vigor, Agustín estabelece a técnica da conversa entre o narrador e o personagem, de forma a deixar o leitor à vontade, como se estivesse praticando também desta dolorosa e lírica conversa tão cheia de cenas vigorosas.

Logo no começo, o narrador entrega as cartas do jogo ficcional num parágrafo muito bem escrito cheio de elipse, guardando a surpresa definitiva no fim deste surpreendente texto. Aqui se revela quem é o narrador. Neste caso, a narradora….

Vamos ver?

Ana Paúcha, acorda. Deixa a tua casa antes que ressurja o sol. A lua está morta. Ninguém te verá partir. Ninguém. Nem animal. Nem estrela. Não deve haver testemunhas do que tens de fazer. Era isso mesmo que desejava quando adormecestes. Há pouco, na tua cadeira: partir sem deixar vestígios É chegado o momento. Deves empreender a viagem com dignidade, sem medo. Com a esperança de que não serei tão mesquinha contigo quanto a Vida.

Nesta frase final a surpresa absoluta, para usar o verbo — a narradora — e não o narrador — é Morte. Com destaque: a morte narra a vida, a sofrida vida de Ana Paúcha, a velhinha que se senta e cobre os ombros com o tecido para morrer tranquilamente, desfazendo-se de todos os bens e de todas recordações. É o que ela deseja/desejou por toda a Vida e que realiza agora em silêncio.

Assim, dentro desta mágica narrativa, o texto volta para o momento que antecede a morte que somente é afirmada momentos depois, com alterações significativas de tempo e de espaço, num belo domínio narrativo.

Por aí é que a narradora faz uma relação forte envolve, inclusive, ou sobretudo o leitor, desta vez participando da conversa:

Com a mesma alegria. Com o mesmo amor. A não ser assim, como saberia ela que a gente nasce para a morte como nasce para a Vida, na inocência, no esforço? Não lhe permitiu que lhe diminuísse a força das mãos padeiras.

Aí aparece a terceira pessoa. Mas a narradora fala com o leitor. Três pessoas narrativas num único texto.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho