Quando me refiro à simplicidade do texto, quero mostrar que o primeiro compromisso do narrador é fazer com que a história chegue aos olhos do leitor comum sem atropelos. Ou seja, mostre-se comum, leve, e as cenas pareçam apenas movimentar a narrativa. Lembrando, mais uma vez, aquilo que repito sempre: a gente escreve como fala. Assim. Exemplo: quando o personagem vai ao cinema, como é que se escreve? “José foi ao cinema”. Quem foi que disse que se escreve: “Naquela noite monótona e silenciosa, o pobre José, cansado da vida, foi ao cinema”. Nunca, jamais. Isso é herança de um tipo de romantismo sem qualquer eficácia. Literatura é simplicidade ainda que cheia de sofisticação. No seu mistério e no seu segredo. E só. Basta. Quando um autor consciente escreve assim, desconfie. Tem coisa.
No entanto, a simplicidade em literatura está cheia de sentidos. Simples não significa simplório, tosco, vulgar, ingênuo. Se você consegue escrever do mesmo jeito que fala, está indo muito bem. A não ser que seja discursivo, retórico, eloqüente. Porque também tem gente assim. Aí controle seus vícios. Portanto, no primeiro impulso — ou na primeira redação — escreva com essa simplicidade, se possível seguindo aquela velha cantilena: sujeito, verbo, predicado. Um passo depois do outro. “José foi ao cinema. Chovia.” Observe que o personagem está em cena e que já existe aí uma atmosfera. Está chovendo muito? “Correu, entre o estacionamento e o cinema, para não se molhar.”
Então: “José foi ao cinema. Chovia. Correu entre o estacionamento e a calçada para não se molhar”. É assim? É assim mesmo. Renovando: no princípio, no primeiro impulso, na primeira redação, é sempre assim. “A água escorreu nos cabelos e nos ombros”. Quer um pouco de leveza na frase? Tudo bem. “Apesar disso, a água escorreu nos cabelos e nos ombros”. Ah, não gosta. Então escreva: “A água escorreu nos cabelos e nos ombros, quase pisa numa poça já na calçada”. Já tem calçada. E agora? “Apesar disso, a água escorreu nos cabelos e nos ombros e quase pisa numa poça”. De propósito foi criada uma cena seguinte: “e quase pisa numa poça”. Uma frase que, no entanto, revela a ansiedade de José. Sem esquecer: cena é o resultado de personagem mais ação mais seqüência.
É claro que há muitas alternativas melhores, bem melhores. Estamos apenas tentando mostrar uma coisa fundamental: a cena resolve o conflito narrativo com eficiência sem o uso abusivo de palavras soltas, adjetivos e advérbios, por exemplo. O que não significa que deve ser sempre assim. Mas aqui vale o exercício. Pouco a pouco descubra os seus caminhos. Aqui, neste instante, estamos trabalhando com a simplicidade. Muita coisa vai acontecer ainda. O importante é saber que se escreve com simplicidade, sem afetação. Faça exercícios, sempre e sempre, quando tomar plena consciência do domínio, então procure outros caminhos. O caminho mais próximo é o da descoberta da pulsação narrativa do personagem. Isso é básico. Sem pressa, porém. Conte primeiro a história, linearmente. Depois procure conhecer melhor a intimidade do personagem. Isso lhe oferecerá condições para, com calma, sofisticar a narrativa. Suando. Às vezes suando muito. “Na fila da bilheteria encontrou Maria, que lhe estendeu a mão.” No primeiro instante, a frase é assim mesmo. Mas com um pouco de cuidado você entra na pulsação de Maria, que é mais lenta do que a de José, você percebeu, não foi? Faça assim: coloque uma vírgula depois de Maria. A frase apresenta uma leve parada, com a vírgula, e diminui a tensão da cena. Quer ver?
José foi ao cinema. Chovia. Correu entre o estacionamento e a calçada para não se molhar. Apesar disso, a água escorreu nos cabelos e nos ombros, quase pisa numa poça. Na fila da bilheteria encontrou Maria, que lhe estendeu a mão.
Observe que a sofisticação vem depois.
É preciso agora trabalhar com mais calma e mais paciência. Vamos experimentar a diferença entre cenas abertas e cenas internas, que parecem a mesma coisa, na primeira leitura, mas que são profundamente diferentes. Tudo isso depende da montagem da história e da pulsação narrativa do personagem. Examinando, mais detidamente, o caso de O machete, conto de Machado de Assis, verificamos que a história é contada pelo narrador onisciente, que dá orientação geral à narrativa, impondo o ritmo, com variações conforme a intervenção do narrador onisciente, personagens ilustrativos, comentários, diálogos, tudo de acordo com o ponto de vista do personagem.
Percebemos, assim, que o narrador alcançou incrível simplicidade no texto, mas avançou na sofisticação. Quando Machado de Assis escreveu o conto optou por dois pontos de vista em oposição: de Inácio Ramos e de Carlota. Dessa forma é possível perceber que a redação é simples, mas a técnica é sofisticada. A técnica não confunde o leitor comum e o conto é lido como uma história. Na verdade é uma história qualquer, mas a pulsação narrativa mostra-se plena de invenção.
Inácio Ramos é mais interior, introspectivo, conforme a pulsação, a primeira parte do conto é assim; Carlota é mais rápida, mais ágil, superficial, segundo a pulsação dela própria. Esses andamentos dividem o texto em dois momentos essenciais: um noturno, interno, para Inácio, e outro solar, externo, para Carlota. Quando lido, esses dois movimentos se escondem e dão a impressão de um só. Tudo porque a primeira leitura é emocional. Na maioria dos casos interessa o enredo, a sucessão de fatos, o lúdico. Básico.
Dessa forma, podemos observar que a primeira parte é intimista, corresponde ao andamento de Inácio, que é lento, para terminar bem mais rápida, porque corresponde ao começo do andamento de Carlota, representada na cena da execução da elegia da mãe do personagem. Esses são momentos significativos para o estudo do conto. E, creio, nos coloca de forma definitiva na pulsação narrativa da história.
Andamento lento de Inácio Ramos
Quem é Inácio? Como ele se comporta? Como age? O narrador do conto deixa que ele se apresente no desenvolvimento da história, na técnica. Não diz, narra. Isso é essencial para a análise da montagem do conto e do personagem, ambas absolutamente integradas. Sabemos, pelo andamento da primeira parte — noturna —, que se trata de uma pessoa metódica, estudiosa, conservadora, simples. Mas quem diz isso? Dizer ninguém diz. No andamento, o narrador mostra. É uma questão de leitura lenta. Aliás, só um lembrete: a primeira leitura já foi feita, ela é emocional, rápida; e a segunda, também, contemplativa, de olhos fechados, de exame interior. Agora a terceira: técnica.
Devemos observar, com lentidão e astúcia, a primeira cena interna, sem nenhuma exuberância exterior:
Inácio Ramos contava apenas dez anos quando manifestou decidida vocação musical.
Pronto: o personagem e a história se apresentam.
NOTA: A coluna de Raimundo Carrero é publicada originalmente no jornal Pernambuco, de Recife. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.