Nunca faltou a Jorge Amado um olhar atento à cultura popular para a construção de sua obra, ou luta verbal, como chamamos aqui, neste insistente estudo da obra do genial escritor baiano, perseguido pelos conservadores e por isso mesmo afastado da educação tradicional desde o começo da carreira.
Uma das suas obras inaugurais chama-se O país do carnaval, que é, por todas as razões, uma eloquente e incisiva crítica à sociedade que não leva nada a sério e onde os problemas, mesmo os mais dramáticos, terminam em carnaval, ou seja, em festa, em brincadeira, em folia, tudo transformado em piada ou em conversa de salão. Isto quer dizer que “este não é um país sério”, para retomar aquela expressão que se imputou a Charles de Gaulle, de forma muito polêmica — mesmo que a frase seja em si mesmo polêmica.
Rebelde
Disposto a enfrentar e a contestar a cultura e, pelo óbvio, a literatura tradicional brasileira, que andava de braços dados com o parnasianismo, Jorge Amado se filia a uma certa “Academia dos Rebeldes”, em Salvador, e, em consequência, ao Partido Comunista, que o tornou engajado desde o primeiro instante. Esta filiação ao Partido mostra, com clareza, que autor baiano estava disposto a uma verdadeira Luta Verbal, que travaria até o final do século 20, mesmo depois de sua desfiliação, decepcionado com o partido, que foi sacudido por escândalos desde o começo da década de 60.
Conforme escreve Josélia Aguiar na biografia do autor, um dos alvos prediletos de Amado e da “Academia dos Rebeldes”, era Rui Barbosa, dono deste estilo parnasiano, límpido e claro, bonitinho e arrumadinho, com função quase higiênica, por assim dizer. Rui seria, entre outras coisas, um dos redatores da Constituição brasileira, chamada de exata e perfeita, um arrumadinho de dar gosto.
Em Jubiabá, Amado lança mão de um folheto de cordel, A filha maldita, através da velha Luiza, que o narrador chama de conservadora e envolve, ao mesmo tempo, destaque e crítica…
Leitores que caso horrível
Vou aqui vos relatar
Me faz o corpo tremer e
Os cabelos arrepiar
Pois nunca pensei no mundo
Existisse um ente imundo
Capaz de seus pais matar
Prossegue o narrador: “Caso que os jornais haviam relatado com grandes títulos e um poeta popular, autor de ABC e de sambas, rimara para vender a duzentos réis no mercado”. Neste caso, nem mesmo a cultura popular é perdoada.
Em Terras do sem-fim, no entanto, a crítica cultural se dirige aos poderosos, em versos criados pelo próprio autor, agora visando os poderosos que são o alvo permanente de sua obra…Vamos ao exemplo:
Fazia pena, dava dó,
Tanta gente que morria.
Cabra de Horácio caía
E caía dos Badarós…
Rolavam os corpos no chão
Dava dor no coração
Ver tanta gente morrer,
Ver tanta gente matar
Mais adiante:
Se largou foice e machado
Se pegou repetição…
Loja de arma enricou,
A gente toda comprou
Se vendeu como um milhão…
É preciso não esquecer que Jorge Amado recorre ao folheto como crítica e exaltação como ocorre com o ABC de Castro Alves ou com o ABC de Antônio Balduíno, o vigoroso personagem de Jubiabá, talvez o mais importante romance do consagrado autor baiano.
Este é ABC de Antônio Balduíno
Negro valente e brigão
Desordeiro sem pureza
Mas bom de coração.
Conquistador de natureza
Furtou mulata bonita
Brigou com muito patrão
Morreu de morte matada
Mas ferido à traição.
Na obra de Jorge Amado, o folclore é sempre e inevitavelmente contestação.