A montagem é o segredo da história

Depois do começo, o escritor iniciante encontra-se com um dilema: como desenvolver a história
Ilustração: Rafa Camargo
27/05/2016

Eis uma questão essencial na narrativa: a montagem. Depois do começo, o escritor iniciante encontra-se com um dilema: como desenvolver a história. Sim, concordo, concordo, continue escrevendo e pronto. Não se faça de rogado. Mas também pode não ser assim. Verifique os efeitos da narrativa. Tudo numa obra de arte tem função e tem efeito. Nabokov chama a atenção do relógio em Dostoievski. Nos romances do escritor russo os relógios estão sempre incomodando os personagens. Estão em todas as paredes. Basta levantar os olhos e os ponteiros estão adiante — grandes e inquietantes. A função é dar ao cenário a beleza e a força que ele exige, compondo a distribuição e a harmonia do espaço; e o efeito é o de, quase sempre e não sempre, de atormentar o leitor, subjugando-o ao tempo. Os relógios servem para lembrar ao leitor e aos personagens que eles são finitos, têm tempo para começar e para terminar. Bobagem para quem lê passando os olhos no papel cheio de letras, e atormentador para quem presta atenção nos movimentos romanescos. Nas habilidades do narrador.

É preciso lembrar sempre a lição de Tchekhov: “Se o escritor coloca uma corda no cenário, ela deve ter função, nem que seja para enforcar o autor. Não é uma questão de fazer tudo certinho, sem espaço para a liberdade criativa, mas de harmonia espacial e cênica”. Sempre cito a questão da música: ninguém escreve uma nota na pauta só porque é bonito ou interessante, ninguém permite um espaço em branco só porque gosta. Um compasso é um compasso e não adianta desorganizar só pelo prazer do criador. Vai dar errado, com certeza, vai dar errado. Assim também é na literatura ou em qualquer outro campo da arte.

Tudo tem função e tem efeito. Ao começar Madame Bovary com uma piada ou uma cena risível, Flaubert sabia que dava leveza ao texto, mas cuidou imediatamente de dar um freio ao ritmo narrativo com o perfil físico-psicológico de Charles, recompondo a seriedade da história e forçando o leitor conter a inquietação. No próximo movimento, libera o riso do leitor mas de tal forma preocupado que logo vem a descrição do boné de Charles, em si mesmo risível mas de extrema seriedade. Ainda neste primeiro capítulo, muda várias vezes o andamento, de forma que em pouquíssimas linhas faz uma revisão em toda a vida de Charles até a morte da primeira esposa para possibilitar o aparecimento de Emma no segundo capítulo. Isto é montagem, tem função e efeito no espírito do leitor. O que permanece nele é a figura cômica de Charles ressaltada nas primeiras páginas do livro, cortada pela presença antipática da esposa para se mostrar dolorosa e dramática na cena de abertura do segundo capítulo, cujo foco agora é Emma.

Ao contrário do primeiro capítulo, risível e piadístico, o segundo é dramático, onde se fala da perna quebrada do pai de Emma — ou seja, a narrativa sofre uma fratura, ela já vinha sombria com a morte da mulher de Charles e agora aprofunda a questão. A função é de choque entre circunstância e apresentação de personagens, com riso e brincadeira para Charles, mas drama e sombra para Emma, que chega ao leitor com lentidão e leveza. O leitor consciente entende logo este choque entre as duas apresentações. Há aí um verdadeiro jogo de sombras que interessava muito a Flaubert. E ainda que não entende, percebe a imensa contradição entre os dois personagens, e já está imerso no poder de sedução dos dois e de suas trajetórias na obra. Podemos acrescentar que o primeiro capítulo é solar, e o segundo, sombrio, definindo desde já o caráter dos personagens e suas existências no andamento do texto.

Reconheço que tudo isso é muito técnico, mas não é uma regra. Podemos todos nós estudar sem repetir para alcançar novas situações narrativas de acordo com a nossa própria voz. Aí está o segredo de uma oficina com o máximo de reflexão e análise. Com todo o investimento na capacidade criativa, absolutamente particular e privada. Com as nossas próprias forças, palavras e circunstâncias. Assim, sinceramente, se desenvolve uma oficina de criação literária. A dificuldade é examinar uma obra literária inteira como quem vê um quadro na parede.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho