A devastação do humano

“Devastação”, de José Castello, é um romance complexo e poético que explora solidão, espelhos e a condição humana
José Castello, autor de “Devastação”
01/09/2025

Em linha reta, direta e incisiva, o romance Devastação, de José Castello, seria apenas a história de Anita e seus fantasmas. Mas não é assim: neste livro admirável por todos os seus méritos — grandes méritos —, o autor revolve a condição humana naquilo que tem de dramático, belo e inquietante, em muitos sentidos lembrando aquele fruto apodrecido de que somos feitos, desde aquele instante lendário, metafórico, simbólico, do paraíso perdido, representado pela maçã que nos insulta e nos atormenta numa visão aterradora de nossa existência. Por isso mesmo, é um romance aterrador, problemático e maravilhoso — daquele maravilhoso que nos cega e nos encanta, feito o escuro no fundo do abismo que nos atrai pela beleza e pela morte.

Embora todo o romance nos remeta a essa ideia, as primeiras palavras, construindo este mundo devastador, já nos transportam para esse universo angustiante, com os elementos de uma cena poderosa. O leitor logo se dá conta do que o espera num texto carregado de sentido. Nem precisa se prevenir: o espelho está ali, colocando-o diante do próprio rosto entristecido e vencido, ensombreado pelos anos e pela solidão. Essa incômoda solidão que nos segue, igual a um cão que nos morde os calcanhares e que, muitas vezes, nem queremos reconhecer — até porque a solidão nos parece incomodar outra pessoa.

O espelho, aliás, exerce um papel importante nesse admirável romance. É, ao mesmo tempo, o espelho da personagem, o espelho do leitor e, por extensão, o espelho do narrador. Algo imprevisível e revolucionário dentro de uma obra que coloca o humano acima do seu limite humano, se é possível dizer assim, inaugurando um novo projeto de reflexão romanesca. Não é sem motivo, por exemplo, esta frase do livro, que vale por toda uma angústia ou por todo um discurso angustiante: “Volto a pensar na mulher que mora no meu espelho”.

Ou seja, a tríplice função do espelho: da personagem, do leitor e do narrador.

Seguido desse texto: “Depois de escavar a superfície de vidro, ela ficou presa do outro lado, o lado de dentro, e isso não deixa de ser um castigo, uma condenação. Ela bem que mereceu”.

Eis aí, então: depois de escavar a superfície de vidro — função do narrador; ela ficou presa do outro lado, o lado de dentro — função da personagem; e “não deixa de ser um castigo, uma condenação” — função do leitor.
Como se percebe, trata-se de uma narrativa extremamente complexa, embora fácil de ler; simples, sem ser simplória. Enfim, maravilhosa…

Pode-se dizer, ainda, que é um desses livros que marcam uma geração.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho