A atual situação da poesia brasileira me lembra a palavra entropia. Dizem os especialistas que o universo vai desmilinguir-se entropicamente, e que não tem mais jeito. A rigor, pensei também numa expressão até mais apropriada: “dispersão poética”. É também mais sofisticada. E se fosse escrever um ensaio sobre isto, terminaria dizendo que somente uma intervenção crítica que operacionalize a “poética da dispersão” pode aclarar e superar a “dispersão poética”. Alguém o fará?
Comecei falando de entropia e dispersão, mas posso recomeçar de outro modo. Factual. Objetivo. A tal dispersão atinge, especialmente, os últimos 60 anos. Até o modernismo há um certo consenso em torno das grandes obras desse período. Pode haver uma ou outra discrepância, mas o conjunto é basicamente o mesmo. Depois é que a coisa pega. Como essa encrenca se deu, quais os responsáveis, que forças desintegradoras atuaram nisso, é tarefa para estudos e pesquisas. E tornando mais claro o que estou dizendo, avanço: é inadiável uma revisão da Geração 45, das vanguardas entre 56 e 68, da poesia marginal institucionalizada nos anos 70 e de uma série de nomes e autores que surgiram nas últimas décadas.
Falei de entropia, falei de dispersão e agora sou forçado a retomar a palavra cânone. Nossa geração se vangloriou de acabar com o cânone. O canônico, paradoxal e ironicamente, era ser contra o cânone. Deu no que deu. Brecha para apressados, espertos e placebos. Não se percebia que ser contra o cânone era uma estratégia de poder, entrar no desejado/aspirado cânone pela janela ou porta de trás. Deu no que deu: geléia geral. Tem quem goste. Há gosto para tudo.
Falo como quem participou ostensivamente nos últimos 50 anos dos caminhos e descaminhos da poesia brasileira. Quando comecei, nos anos 50, o modernismo estava no auge e seus poetas maiores estavam tendo a edição de suas poesias completas. Assisti ao apogeu da Geração 45, que ocupava suplementos, revistas e programas de rádio com seus poetas sendo celebrados . Vi (e participei) da emergência das vanguardas (1956-1968). Vi (e participei) da efervescência lítero-musical dos anos 60 e 70. Vi (e participei) da configuração da poesia marginal nos anos 70 e assisti à sua institucionalização universitária. Vi pessoas e grupos agressivamente aparecerem, alardearem que descobriram a “fórmula da verdadeira poesia”, e desaparecerem.
Durante todo esse tempo, fui júri de dezenas de prêmios de poesia, fui crítico, ajudei a editar poetas em livros e revistas. Repito: participei dos caminhos e descaminhos da poesia brasileira nos últimos 50 anos denunciando sempre a “luta pelo poder literário” e buscando o diálogo. E acho que hoje as coisas estão muito confusas e têm que ser revistas. Não podemos botar a culpa só na “fragmentação” típica da pós-modernidade e fingir que não é conosco.
Insistindo na urgência de se passar a limpo o século 20, algumas questões me parecem pertinentes em relação à poesia:
1) Será que não é um erro fazer um pacote e jogar no lixo a geração 45, livrando a cara apenas de João Cabral? O quanto de pré-conceito, de patrulhamento, de briga de gerações havia na estratégia de descartar tantos autores que são julgados sem serem lidos? Dou exemplo de uma das clamorosas injustiças — Paulo Mendes Campos. Foi trucidado pela juvenilidade auriverde de Mário Faustino e ignorado pelos que vieram depois.
2) As “vanguardas” dos anos 50 e 60, graças ao seu charme utópico e à neofilia, não teriam sido supervalorizadas? O que restou de tanto messianismo e salvacionismo, o que restou de poesia em tudo isso?
3) Reconhecendo o papel da música popular no contexto histórico e político dos anos 60 e 70, não teria ocorrido, no entanto, um exagero de teses sobre compositores e músicos juvenilmente transformados em grandes vates?
4) Será que alguns “poetas marginais” tão institucionalizados são assim tão relevantes?
5) Enfim, um problema que transcende a poesia. A questão socioantropológica da mediação e da legitimação. Até os anos 70 havia uma meia dúzia de críticos de repercussão nacional que funcionavam como instância legitimadora (ou não). O país que tinha 70 milhões, hoje tem cerca de 200 milhões de habitantes. Aumentou o número de poetas e dissolveram-se as instâncias mediadoras e legitimadoras. Os suplementos, cedendo à sociedade do espetáculo, optaram por resenhas e reportagens. E ocorreu o fenômeno que chamo de “evangelização da crítica”, pastores criam seitas no fundo de quintal e pastoreiam seus fiéis.