Há que saber que o charme da desordem e da entropia tem seu preço. O elogio à desordem sobre ser algo impulsivo e superficial pode ser um comportamento ingênuo e ideológico de certa estética e ideologia. Na desordem existe também uma cota de incompetência. E é contra isso que o artista autêntico luta.
O termo entropia, que vinha do século 19, passou a significar mais do que nunca uma espécie de apocalipse-em-progresso. Ou seja, a noção barata de entropia, eliminava a idéia de ordem e causalidade. Mas se o físico que descobriu a “indeterminação” sair pela janela e não pelo elevador de seu prédio, vai se precipitar na calçada. Se o cientista que trabalha com o universo quântico atravessar o sinal vermelho, será atropelado. E assim por diante, existe um relógio cósmico e biológico que não se pode ignorar. Os economistas controlam décimos de inflação puxando alavancas teóricas. O átomo não é uma bagunça onde cada partícula faz o que quer. Os aviões decolam do chão e as máquinas das indústrias funcionam porque há um antes e depois, causa e efeito. Igualmente as reações psíquicas e psicológicas, tanto quanto a economia, obedecem a certos princípios constatáveis. A maré alta e a maré baixa são previstas com precisão. Quando se manda um foguete ao espaço sabe-se onde cairá. Há hoje as bombas inteligentes que caçam as vítimas dentro de casa. Há prédios e talvez já cidades inteligentes, onde a previsibilidade é a invariante. Portanto, a ordem e a conseqüência estão na base da vida. Daí que Rudolf Arnheim dirá que “a ordem é um pré-requisito da sobrevivência; por isso, o impulso de criar disposições ordenadas é inerente à evolução”. Arnheim ainda indaga: “o que é desordem? Não é a ausência de qualquer ordem, mas antes o choque de ordens não coordenadas”. Como já se disse, o artista é aquele que entre o caos e o cosmos cria o caosmos, que é uma alegoria que o transcende.
Até o excêntrico e radical Ezra Pound, no poema 13 de seus Cantos trata indiretamente dessa questão ao citar um sábio chinês:
Qualquer um é capaz de excessos,
É fácil atirar além do alvo,
O difícil é fixar-se no meio.
O caos parece caótico à primeira vista. O caos é um a priori. É uma primeira visão de algo assistemático, até que alguém lhe confira um modelo interpretativo que ordene de certa maneira a sua compreensão. Como James Gleick demonstrou em Caos — a criação de uma nova ciência, a teoria do Caos não é caótica, e sim complexa. A ciência trabalhando com o erro pode chegar a certas conclusões pelo acaso e erraticamente, mas não entroniza o erro. Na filosofia o pensamento de Bachelard e Canguilhem disserta sobre a utilidade do erro para se acertar. Clarice Lispector — romancista, mas uma espécie de pensadora em estado puro — dizia: “o erro é um dos meus modos fatais de trabalho”. Enfim, o chamado “método de tentativa e erro” é um método para se errar menos. Da mesma maneira que a antiarte deveria ser uma estratégia de ampliar e enriquecer o artístico e não negá-lo. Uma coisa é a errância — a busca do acerto embora os erros, outra o fascínio do próprio erro que paralisa o conhecimento.
“A verdadeira obra de arte não é um enunciado à deriva”, diz Arnheim, analisando a presença implícita e explícita do “centro” tanto na Anunciação de Fra Angélico quanto na Guernica de Picasso, tanto em Matisse quanto em Pollock, tanto em Joseph Albers quanto em Mondrian. Daí poder dizer que “a ordem é um pré-requisito da sobrevivência, por isto, o impulso de criar disposições ordenadas é inerente à evolução”. Ou, em outros termos, a teoria da excentricidade é autocontrariada, pois o “o esforço para negar a centricidade torna-se evidente somente se o centro está potencialmente presente na consciência do expectador”. Desta maneira, o analista vai demonstrar que o centro não é abolido, mas rasurado/ocultado durante sua presença virtual, da mesma maneira que a atonalidade da música repercute a tônica ausente. Isso pode ser constatado também num Ulisses ou Finnegans Wake, de James Joyce, que dialogam com estruturas clássicas e míticas. Essas obras não são simples “descentramentos” são “novos centramentos”. O insólito da narrativa repousa sobre estruturas muito bem delineadas. Mesmo o monólogo tipo “fluir da consciência” — em que aparentemente se subverte a escrita convencional em benefício da oralidade e da subjetividade — tem a presença de “sujeitos”, “objetos” e “complementos” organizando o sentido. Sobre textos semelhantes dos mestres da modernidade se poderia aplicar o que Einstein disse ao ver uma ordem além e aquém da relatividade através da sua célebre frase: “Deus não joga dados”.
Como se vê, a questão tem que ser encarada não apenas esteticamente. Ela não é apenas filosófica, nem retórica. Não podemos enfrentá-la apenas com textos, mas com testes em laboratório. Ela não é abstrata, é humanamente concreta. Como Freud e Piaget, entre outros, demonstraram, a criança é egocêntrica e isso é normal no estágio de sua evolução. O crescimento não vai acabar com o centro, mas enriquecê-lo, torná-lo mais complexo. Por outro lado, a neurose é cêntrica. Tão cêntrica quanto o vício e as ideologias políticas, religiosas e estéticas. A maturidade pessoal e social, pressupõe que aceitemos a existência de outros centros, que não o nosso próprio umbigo. Por conseguinte, há uma diferença entre um produto chamado solipsismo típico da maioria das obras produzidas em nossa época, fruto de desorientação teórica e a arte autêntica que rearticula os vários centros num pacto que é “artístico” e não “autista”.