Uma antropóloga americana chamada Laura Bohannan resolveu testar se uma tribo primitiva na África (os Tiv) podia compreender Shakespeare. Ela partia de um pressuposto: que o gênio inglês tratava de sentimentos universais nos seus textos dramáticos, portanto, todos deveriam entendê-lo. E, assim, dispôs-se a verificar os limites de sua teoria, que era também uma maneira de estudar antropologicamente as diferenças culturais.
Rumou para o oeste da África e foi viver com os Tiv. Adotou uma estratégia que foi ficar lendo sozinha, na sua cabana, o Hamlet. Ficava de propósito lá entretida esperando que eles se interessassem pelo que estava lendo. E tão entretida estava que os primitivos começaram a ficar intrigados, afinal, o que acontecia com ela quando ficava com aquele livro na mão? Pediram, então, que lhes contasse a história que estava lendo.
Laura chamou-os para ouvi-la. Estavam eles ali já sentadinhos em torno dela e mal ela iniciou a narrar, começaram os problemas de interpretação. Quando descreve aquela cena inicial em que o rei e pai de Hamlet, depois de assassinado, aparece vagando na torre do castelo, um dos homens da tribo disse que aquilo era impossível. Ele não podia ser o “chefe”, mas outra pessoa, apenas um representante dele. E a coisa tornou-se mais complicada porque não podiam entender a palavra “fantasma”. Para eles só podia ser um “zumbi”, uma entidade maléfica qualquer. Além do mais, diziam, os mortos não andam, que coisa era aquela de ficar zanzando noite adentro?
A antropóloga tentou explicar uma coisa e outra, e tentando passar por cima das divergências, continuou. Quando lhes foi dito que o tal fantasma do rei havia confidenciado a Hamlet que só ele, seu próprio filho, poderia resolver o problema de sua morte, ou seja, de vingá-lo, de novo os primitivos acharam estranho. Na tribo deles, não é tarefa dos jovens resolverem os problemas. Quem tem que assumir a responsabilidade é o ancião. E o ancião na estória de Hamlet era Cláudio, tio de Hamlet. Só que este é que havia assassinado o rei com o beneplácito da própria mãe de Hamlet.
Os africanos já deviam estar achando os brancos para lá de malucos, e mais intrigados ficaram quando a narradora lhes deu outra informação da estória. Ou seja, que Gertrudes — a mãe de Hamlet se casou rapidamente com Cláudio, ou seja, não havia sequer deixado o cadáver do marido esfriar.
Isso era, de novo, inaceitável. Segundo o costume daquela tribo, a viúva tinha que ficar pelo menos dois anos de luto. Claro que as mulheres nem sempre concordavam com isso, pois durante a narrativa da antropóloga, uma esposa que ouvia a estória reclamava que quando o marido morria, era necessário rapidamente outro homem para cuidar do campo e das cabras.
Enfim, a tarefa a que se propôs a antropóloga americana foi se frustrando. A cada informação que dava, vinha uma divergência cultural e simbólica. Ela teve até que saltar o famoso monólogo. Essa coisa de “ser” e “estar” só os metafísicos ocidentais entendem.
É possível que você como eu nunca tenha tentado explicar Hamlet aos gentios. Mas é certamente provável que, sem ir à África e sem ter o Hamlet nas mãos, você e eu tenhamos tido experiências semelhantes dentro da nossa própria tribo tentando explicar o inexplicável. Em relação a outras tribos, piora.