Duchamp e o paradoxo do mentiroso

O farsante artista que tenta disfarçar sua mediocridade num irônico jogo verbal
01/06/2008

Uma doutrina falsa não se pode contradizer, já que se baseia na convicção de que o falso é verdadeiro.
Goethe

Mentir exige alguma habilidade. Há bons e maus mentirosos, e apesar do que dizem alguns pós-modernos, há bons e maus artistas. Diz o ditado que a “mentira tem perna curta”, pretendendo nos garantir que o mentiroso não vai longe, é logo desmistificado. Sabemos, no entanto, que isso não é bem verdade. Há mentiras que resistem por muito tempo. E, não entanto, são mentiras.

Um dos itens mais conhecidos da lógica e da sofística é o paradoxo do mentiroso. Como acreditar no mentiroso? Quando é que ele diz a verdade? Se alguém diz “eu estou mentindo”, tal afirmativa “só será verdadeira se o autor não estiver mentindo”. Ou como diz Lawrence Goldstein estudando conceitos chaves da Lógica: “Considere o enunciado — ‘Este enunciado é falso’. Se ele é verdadeiro, então o que ele diz é verdade, a saber: que ele é falso. Se ele é falso, então uma vez que isso é exatamente o que ele declara a respeito de si mesmo, ele é verdadeiro. Logo, quer seja verdadeiro, quer falso, ele é tanto verdadeiro quanto falso”.

Daí, a crítica ficar indecisa e paralisada diante de afirmações como essas do mentiroso paradigmático Marcel Duchamp: “Quanto mais convivo com artistas, mais convencido fico de que eles são uns farsantes depois que começam a ter um mínimo de sucesso”. Aí há um silogismo que pode ser assim desdobrado:

Duchamp é um artista
Todo artista é um farsante quando tem sucesso
Duchamp teve sucesso
Logo, Duchamp é um farsante

Mas se o farsante chama os demais de farsantes, então ele não é farsante? Ou será que é tão farsante que engana os farsantes exercendo uma metafarsa mais refinada que a dos seus parceiros?

E no mesmo texto, Duchamp, esse nosso dândi, histrião, sedutor e sofista, continua “todos os cachorros ao redor dos artistas são vigaristas”. Noutro texto ele vai dizer que “este século é um dos mais baixos na história da arte, mais baixo até que o século XVIII, quando não havia uma arte maior, mas apenas frivolidades”.

Então, pode-se perguntar: quando o “anartista” reconhecido responsável direto “por um dos mais baixos níveis da história da arte” diagnostica esse baixo nível, torna-se ele automaticamente absolvido de tudo o que fez?

Aqui, tirando os nós das contradições aparentes, chegamos a configurar o que em estudo chamei de falso neutro. O mentir sobre a mentira não torna a mentira necessariamente mais verdadeira. E até mesmo os melhores biógrafos de Duchamp, tanto Jean Clair, quanto Calvin Tomkins e Judith Housez, tiveram que admitir, em meio ao encantamento que o personagem lhes desperta, que ele é que abriu a entrópica “caixa de pandora” da modernidade. Mas não basta aceitar isso atonitamente. É necessário analisar o conteúdo dessa “caixa”, o que há dentro dela e o que ela abre ou entreabre. Estou enfim fazendo avançar a questão da paralisia do conhecimento. E por isso é instrutivo retomar também aquela conhecida frase de Goethe que tem algo a ver com o paradoxo do mentiroso. Dizia ele que “uma doutrina falsa não se pode contradizer, já que se baseia na convicção de que o falso é verdadeiro”[1].

Pois essa é exatamente a questão central nas afirmativas de Duchamp quando toma o falso pelo verdadeiro. Seus axiomas podem e devem ser desmontados, e não é se escondendo atrás da artimanha irônica que resistirão.

Lembremos que nosso mentiroso paradigmático dizia: “cada palavra que eu lhes digo é estúpida e falsa”. As pessoas ouviam ou liam isso e ficavam com o juízo adormecido, tomando a frase simplesmente como humor. Tal tipo de pensamento encontra correspondência nos sofistas gregos, que diziam coisas como: “durante muito tempo me espantei com minha própria sabedoria e não acredito nela”. É engraçado. Mas Groucho Marx também era engraçado, mas nem por isso está nos livros de filosofia, e sim na história do humor. Teríamos, portanto, que começar a ler menos ingenuamente uma série de jogos verbais (engraçados e inócuos) que inundaram o pensamento da modernidade. E nisso Duchamp é de novo paradigmático, ao dizer tolices como essas, que alguns consideram como verdades magistrais:

A idéia de julgamento deveria desaparecer.
Sou totalmente um pseudo.
Pode alguém fazer obras que não sejam obras de arte?
A palavra não tem a menor possibilidade de expressar alguma coisa.

Por que nunca ninguém se interessou em examinar essas proposições?

Nota
[1] Lasky, Malvin J. “Utopia y revolution”. Fondo de Cultura Económica. Mexico 1985, p. 92.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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