Certas incertezas tão certas

Quando a certeza volta ao centro das discussões, esfacelando o relativismo reinante
01/03/2008

Leio que o cientista português José Croca acaba de ganhar o Prêmio Galileu de Física por apresentar argumentos teóricos e práticos que contestam o chamado “princípio da incerteza” de Heisenberg.

Isso interessa-nos sobremodo. Não só aos físicos. Também aos escritores. Como se sabe, o século 20 exercitou dois paradigmas contraditórios: O Modernismo tinha certeza de tudo, especialmente do futuro. Já o Pós-Modernismo optou pelo paradigma da “incerteza”, do “acaso”, da “probabilidade” e da “relatividade”. Foi o reinado do “relativismo”. Passou-se a concluir que a “incerteza” é que regula a história, a arte e a vida. Alguns decidiram que a história tinha chegado ao fim, outros que a arte tinha morrido e, por isso, a ética tanto quanto a estética caíram em desuso. Começou-se a agregar isso ao pensamento de Nietzsche que no final do século 19 demoliu algumas “certezas” filosóficas. E Nietzsche passou a ser uma espécie de filósofo quântico, que está na base do pensamento de Foucault, Derrida, Deleuze, Barthes e outros sofistas dos anos 60, que reafirmaram que não existe “verdade”, que tudo são aparências, tudo é interpretação e deslizamento de sentidos. Vivia-se no império do significante vazio. A filosofia e a teoria da literatura viraram um apêndice ou vulgata da física quântica. Os pensamentos de direita e de esquerda, que no Futurismo e Modernismo tinham certeza de tudo, caíram num ceticismo, numa melancolia, num cinismo, num relativismo.

Chegou-se ao fim do século 20, portanto, com a ideologia da incerteza. O certo, ou seja, o politicamente correto, era o incerto. Nas Ciências Humanas, buscou-se uma confirmação disso na lingüística. Assim como em cada língua as palavras, por exemplo, “cão” ou “árvore”, são grafadas de formas diversas, passou-se a admitir que a verdade é arbitrária, deslizante, insituável. Adeus universo de causa e efeito. Então, Newton — o gênio que aglutinou todo o saber do século 18 — passou a ser um tolo. Aristóteles, então, um primata. Até Einstein, que não curtia totalmente a idéia da “incerteza”, foi depreciado, só porque argumentou que Deus não joga dados com o universo.

Realmente a física quântica dizia coisas desnorteantes: “um elétron ao mudar de órbita, desaparecia de uma e reaparecia instantaneamente na outra sem percorrer espaço intermediário”. Era o famoso “salto quântico”. Com isso, começamos a examinar o teatro de Beckett, a prosa de Joyce, as incertezas existenciais dos personagens, a pintura abstrata, a arte do caos. E oficializaram-se as tolices ditas por Duchamp: de que todo mundo é artista, que o receptor é que faz a obra e que não há problema porque não há solução. O mundo era mesmo um teatro do absurdo. Um jogo de dados gratuito como queria Mallarmé.

Já não se tratava daquilo que ocorrera ao tempo de Ptolomeu e Copérnico em que se discutia qual era o centro do universo. Agora a ciência, as artes e a filosofia vinham dizer que não havia centro algum. “Descentramento” passou a ser a palavra da moda. Convenhamos, isso faz qualquer um perder o norte.

A geração que se formou seduzida pelas teorias de Nietzsche, Foucault, Derrida, Deleuze, Barthes e outros menores, se apaixonou tanto pela incerteza, que criou um novo credo, a certeza da incerteza. Isso virou uma religião, a religião de paradoxos insolúveis e dos oxímoros paralisantes. O vazio pleno. O silêncio ruidoso. A indecidibilidade do dizer.

Essa descoberta do físico português dá o que pensar. Pode ser mais uma passo na revisão do século 20, época em que tínhamos tantas incertezas certas. Esse José Croca alega que o pensamento de Heisenberg impunha uma barreira ao conhecimento. “Mostrei que tal barreira não existe. Ou que podemos ir muito além dela. E que é possível explicar fenômenos tidos com misteriosos e inexplicáveis em termos causais. Não há fenômenos misteriosos em Ciência.”

Já nos anos 70, no entanto, a Teoria do Caos demonstrou que o caos não é caótico, que tem uma ordem. E contrariando a ideologia da incerteza, desde os anos 60, Rudolf Arnheim dizia que “uma obra de arte não é um enunciado à deriva”. Já em 1962, Thomas Kuhn discutia como se formam os novos paradigmas, e começa em todo mundo uma revisão da arte moderna e contemporânea.

A pergunta é: até que ponto a física agora pode contribuir para a fixação de outro paradigma diante da exaustão do velho paradigma que aprisionava o conhecimento decretando que a incerteza, paradoxalmente, era um horizonte intransponível?

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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