No livro The reenchantment of art (O reencantamento da arte), Suzi Gablik diz estar farta de tanta imundície na arte. E dissertando sobre a necessidade de sairmos dessa cloaca em que nos metemos há mais de cem anos, ela cita Haim Steinbach, que num simpósio sobre “Arte de vanguarda nos anos 80”, em que ela estava presente, em Los Angeles, de repente, Steinbach ao tratar do baixo corporal ou baixo astral da arte, fez a seguinte consideração sobre a pós-modernidade: “vivemos numa cultura da pornografia, estamos engolfados nela, contidos nela. Não estamos na margem do rio olhando o excesso de merda que flui, mas estamos boiando nela e com ela”.
Isso tem implicações muito sugestivas. Como se sabe, existe muita relação entre fezes e dinheiro, merda e ouro. Disso já nos falavam tanto Max Weber quanto Freud. Poderia por isso, por exemplo, dizer que está ocorrendo na história da arte recente, algo que remete (pelo avesso) para o mito de Midas. O rei da mitologia grega convertia em ouro aquilo em que tocava. Isso acabou por levá-lo ao desespero, pois já não podia se alimentar, estava a morrer de fome, exatamente por causa de uma “enganadora abundância”. Como diz Joaquim Chaves Ribeiro no seu Vocabulário e fabulário da mitologia, na lenda de Midas está um dos paradoxos que ilustram o paradoxo da arte da contemporaneidade, quando se decretou que tudo aquilo em que qualquer artista tocava virava arte. Foi o toque generalizador, que levou à idéia de uma abundância enganadora, que ao contrário de enriquecer, empobreceu e miserabilizou a arte.
Mas a história de Midas é exemplar ainda em outras versões. Diz-se que por ter irritado Apolo, este “enfeitou-lhe a cabeça com um par de orelhas de burro. Essa monstruosidade, escondida sob um barrete, só era conhecida do seu cabeleireiro Canas, que, intimado sob ameaça de morte, a guardar segredo, e não podendo conter a sua indiscrição, fez uma cova na terra, em lugar secreto, e, inclinando-se para ela, murmurou baixinho; ‘Midas, o rei Midas, tem orelhas de burro’. Depois desse desabafo, encheu de novo a cova, e nesse lugar nasceram imediatamente canas que, ao mais leve sopro do vento, repetiam — ‘Midas, o rei Midas, tem orelhas de burro’. Divulgou-se assim o segredo. Segundo se diz, Midas se matou bebendo sangue de touro”.
Interessante ver aí algo semelhante àquela história do rei nu, divulgada por Andersen. Em ambas há um segredo/verdade do rei que não deve ser revelado, e que, no entanto, vem irremediavelmente a público. Se lá é o menino que revela o que está oculto, aqui é o cabeleireiro que sabe o que tem na cabeça do rei. Não há como esconder ou rasurar certas verdades. São evidentes demais, nascem como aquelas orelhas de burro na cabeça do rei. A solução para essa “dissonância cognitiva” diante do que é gritantemente real, primeiramente, é indireta: o segredo é confiado, alojado em uma cova, para ficar bem oculto. Mas ele é tão forte e vital que brota, floresce e acaba se propagando aos quatro ventos.
Numa cultura que transformou mais do que nunca fezes em ouro e com isso deixou as pessoas famintas de beleza e de arte, o mito de Midas tem algo a nos ensinar. Pode-se dizer, por outro lado, que há hoje um certo tipo de artista que é um Midas preguiçoso, fracassado, que não conseguiu transformar a maçã em ouro e que não apenas a serve verde, mas tenta convencer aos demais que ela é dourada. E envolvido no ilusionismo verbal, o comprador da maçã finge acreditar que ela está madura ou é dourada.