Nos nossos dias, as pesquisas desenvolvidas em certos domínios da filosofia, da psicologia, da lingüística e mesmo da história da arte tendem a sugerir que há alguma coisa não vai bem com o paradigma tradicional.
Thomas S. Kuhn
Segundo Thomas Kuhn[1], as mudanças de paradigmas se anunciam quando há uma insatisfação diante do que se observa. O indivíduo (o cientista, o artista, o pensador) começa a perceber que existe “alguma coisa que não vai bem”, algo que, em princípio, não se consegue explicar.
A busca do novo ou novos paradigmas só pode ocorrer se houver insatisfação. E a insatisfação atual está patente tanto na apatia do público quanto nas intervenções críticas de vários pensadores e artistas. Há, no entanto, uma insatisfação ativa e outra passiva. A primeira mobiliza o organismo, busca modificação, tenta resolver o conflito consigo mesmo e com o meio. A segunda, é apática, autocomplacente. A modernocontemporaneidade, lendo erradamente Freud, fez apologia do “mal-estar”, da insatisfação feliz e arrogante. Operando como oxímoro, pratica a patologia do double bind. É o caso em que o desconforto provoca conforto e o estranho se torna contraditoriamente familiar. Desta forma masoquista, como acontece com qualquer comportamento neurótico, não se sairá da perversa acomodação, pois como sabe qualquer analista ou analisando, a neurose, como o vício, tem lá o seu conforto e sua gratificação. E mudar implica em correr riscos e sofrer. Como diria Rudolf Arnheim, “uma das tarefas mais ingratas para o ser humano é fazer um objeto desagradável”; no entanto, “há uma epidemia de objetos desagradáveis que infestou hoje tudo o que a civilização tocou”[2].
Além da “insatisfação” diante do paradigma institucionalizado, o pensador, o cientista e o artista percebem uma coisa estranha, uma “anomalia” no sistema. Perceber a anomalia é já ter pré-conscência da crise. Se bem que “perceber uma coisa, não é ainda representá-la”[3]. Crise e consciência se solicitam, sendo a potencialização da segunda o primeiro passo para a solução da primeira. Quando não se tem noção/consciência de um problema, evidentemente, não há por que querer resolvê-lo. Ou pode-se cinicamente apagá-lo dizendo simplesmente como Duchamp que “não há solução, porque não há problema”. Se acho que fumar não provoca câncer, posso continuar a fumar levianamente. O que não impedirá o câncer ou outra enfermidade decorrente daquele vício de me atacar mais cedo ou mais tarde. Não assumir a crise não é eliminá-la. Ocorre com o corpo e com o inconsciente pessoal e social o mesmo que ocorre com a história: o “retorno do reprimido”.
Mas Kuhn estende um pouco mais a idéia de “insatisfação”, de “anomalia”, e mencionando o que chama de “detalhe esotérico” refere-se à presença de um “enigma” paralisante. Inicia-se, então, um trabalho de “localizar o enigma”, configurá-lo para entendê-lo, num esforço para se sair do impasse. Interessante lembrar que em francês “impasse” é o nome de uma via ou rua sem saída. Coloca-se uma placa “impasse” para explicitar a limitação do caminho. Na filosofia e na matemática esse impasse é traduzido pela palavra “aporia”. Mas é estimulante pensar que “áporo”, significando a sem saída, o problema sem solução, é também o nome de um escaravelho e de um orquídea. Drummond explora esses sentidos no poema Áporo[4]. O poeta, o pensador, o cientista, portanto, podem ser alguém que procura a saída na terra escura, a orquídea que, deixando de ser parasitária, esplende acima do solo o seu perfume e suas cores.
Como falar de paradigmas dentro de um contexto cultural em que se tornou comum negar o paradigma?
Teriam os paradigmas cessado de existir?
Ou a negação do paradigma pertence a outro tipo de paradigma?
A negação do paradigma pode ser analisada (paradigmaticamente)?
Outra questão aparentemente banal que salta do texto de Kuhn é: por que razão alguém pode se dedicar a resolver enigmas? Por que sua libido se concentra toda nessa façanha? Como seu imaginário se mobiliza para isto? No caso das ciências, ele levanta várias hipóteses: desejo de ser útil, “emoção de percorrer caminhos novos, a esperança de descobrir uma ordem e a necessidade de pôr à prova o conhecido estabelecido”[5].
Eu acrescentaria que o cientista, o teórico e o artista se dedicam a resolver um enigma quando este deixa de ser uma questão geral e se transforma em uma questão pessoal. Hannah Arendt dizia que se não conseguisse entender a lógica do nazismo, enlouqueceria. Por isso, empenhou-se em equacionar esse pesadelo pessoal e histórico. Quando há uma intersecção entre o indivíduo e o grupo, entre o presente e o tempo histórico, a decifração do enigma pode ter utilidade pública.
Um dos pontos fascinantes das peripécias do conhecimento é que, se o engano é coletivo, também a correção, posto que desencadeada por indivíduos, pode ser coletivamente gerada. Pode, durante anos e séculos, prevalecer um determinado ponto de vista científico e estético que parece imutável e universal. Mas no interior dessa plácida superfície algo como deslocamento de placas geológicas está se operando, e, de repente, um terremoto, e começa a formação de novos continentes e ilhas do saber.
Segundo Thomas Kuhn[1], as mudanças de paradigmas se anunciam quando há uma insatisfação diante do que se observa. O indivíduo (o cientista, o artista, o pensador) começa a perceber que existe “alguma coisa que não vai bem”, algo que, em princípio, não se consegue explicar.
A busca do novo ou novos paradigmas só pode ocorrer se houver insatisfação. E a insatisfação atual está patente tanto na apatia do público quanto nas intervenções críticas de vários pensadores e artistas. Há, no entanto, uma insatisfação ativa e outra passiva. A primeira mobiliza o organismo, busca modificação, tenta resolver o conflito consigo mesmo e com o meio. A segunda, é apática, autocomplacente. A modernocontemporaneidade, lendo erradamente Freud, fez apologia do “mal-estar”, da insatisfação feliz e arrogante. Operando como oxímoro, pratica a patologia do double bind. É o caso em que o desconforto provoca conforto e o estranho se torna contraditoriamente familiar. Desta forma masoquista, como acontece com qualquer comportamento neurótico, não se sairá da perversa acomodação, pois como sabe qualquer analista ou analisando, a neurose, como o vício, tem lá o seu conforto e sua gratificação. E mudar implica em correr riscos e sofrer. Como diria Rudolf Arnheim, “uma das tarefas mais ingratas para o ser humano é fazer um objeto desagradável”; no entanto, “há uma epidemia de objetos desagradáveis que infestou hoje tudo o que a civilização tocou”[2].
Além da “insatisfação” diante do paradigma institucionalizado, o pensador, o cientista e o artista percebem uma coisa estranha, uma “anomalia” no sistema. Perceber a anomalia é já ter pré-conscência da crise. Se bem que “perceber uma coisa, não é ainda representá-la”[3]. Crise e consciência se solicitam, sendo a potencialização da segunda o primeiro passo para a solução da primeira. Quando não se tem noção/consciência de um problema, evidentemente, não há por que querer resolvê-lo. Ou pode-se cinicamente apagá-lo dizendo simplesmente como Duchamp que “não há solução, porque não há problema”. Se acho que fumar não provoca câncer, posso continuar a fumar levianamente. O que não impedirá o câncer ou outra enfermidade decorrente daquele vício de me atacar mais cedo ou mais tarde. Não assumir a crise não é eliminá-la. Ocorre com o corpo e com o inconsciente pessoal e social o mesmo que ocorre com a história: o “retorno do reprimido”.
Mas Kuhn estende um pouco mais a idéia de “insatisfação”, de “anomalia”, e mencionando o que chama de “detalhe esotérico” refere-se à presença de um “enigma” paralisante. Inicia-se, então, um trabalho de “localizar o enigma”, configurá-lo para entendê-lo, num esforço para se sair do impasse. Interessante lembrar que em francês “impasse” é o nome de uma via ou rua sem saída. Coloca-se uma placa “impasse” para explicitar a limitação do caminho. Na filosofia e na matemática esse impasse é traduzido pela palavra “aporia”. Mas é estimulante pensar que “áporo”, significando a sem saída, o problema sem solução, é também o nome de um escaravelho e de um orquídea. Drummond explora esses sentidos no poema Áporo[4]. O poeta, o pensador, o cientista, portanto, podem ser alguém que procura a saída na terra escura, a orquídea que, deixando de ser parasitária, esplende acima do solo o seu perfume e suas cores.
Como falar de paradigmas dentro de um contexto cultural em que se tornou comum negar o paradigma?
Teriam os paradigmas cessado de existir?
Ou a negação do paradigma pertence a outro tipo de paradigma?
A negação do paradigma pode ser analisada (paradigmaticamente)?
Outra questão aparentemente banal que salta do texto de Kuhn é: por que razão alguém pode se dedicar a resolver enigmas? Por que sua libido se concentra toda nessa façanha? Como seu imaginário se mobiliza para isto? No caso das ciências, ele levanta várias hipóteses: desejo de ser útil, “emoção de percorrer caminhos novos, a esperança de descobrir uma ordem e a necessidade de pôr à prova o conhecido estabelecido”[5].
Eu acrescentaria que o cientista, o teórico e o artista se dedicam a resolver um enigma quando este deixa de ser uma questão geral e se transforma em uma questão pessoal. Hannah Arendt dizia que se não conseguisse entender a lógica do nazismo, enlouqueceria. Por isso, empenhou-se em equacionar esse pesadelo pessoal e histórico. Quando há uma intersecção entre o indivíduo e o grupo, entre o presente e o tempo histórico, a decifração do enigma pode ter utilidade pública.
Um dos pontos fascinantes das peripécias do conhecimento é que, se o engano é coletivo, também a correção, posto que desencadeada por indivíduos, pode ser coletivamente gerada. Pode, durante anos e séculos, prevalecer um determinado ponto de vista científico e estético que parece imutável e universal. Mas no interior dessa plácida superfície algo como deslocamento de placas geológicas está se operando, e, de repente, um terremoto, e começa a formação de novos continentes e ilhas do saber.
Notas
[1] Kuhn, Thomas. “La structure des révolutions scientifiques”. Flammarion. Paris, 1970, p. 170.
[2] Arnheim, Rudolf. “Para uma psicologia da arte. Arte e entropia”. Dinalivro. Lisboa, 1997, p. 20.
[3] Idem,ibidem. p. 43.
[4] Ver análise deste poema em “Drummond, o gauche no tempo” ob. cit.
[5] Kuhn,Thomas, ob. cit. p. 63.
[1] Kuhn, Thomas. “La structure des révolutions scientifiques”. Flammarion. Paris, 1970, p. 170.
[2] Arnheim, Rudolf. “Para uma psicologia da arte. Arte e entropia”. Dinalivro. Lisboa, 1997, p. 20.
[3] Idem,ibidem. p. 43.
[4] Ver análise deste poema em “Drummond, o gauche no tempo” ob. cit.
[5] Kuhn,Thomas, ob. cit. p. 63.